sexta-feira, abril 29, 2011

Frase

"Infra-estrutura mesmo é educação". Alvin Toffler.

terça-feira, abril 26, 2011

Publicidade: onde foi parar a isonomia?

O escopo legal é claro. Licitação é o procedimento formal em que a Administração Pública convoca, mediante condições estabelecidas em ato próprio (edital ou convite), empresas interessadas na apresentação de propostas para o oferecimento de bens e serviços.
Quando chama uma licitação, o ente público objetiva garantir a observância do princípio constitucional da isonomia - igualdade de condições entre os interessados - e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, de maneira a assegurar oportunidade igual a todos os interessados e possibilitar o comparecimento ao certame ao maior número possível de concorrentes.
Agora pesquise na internet ou pegue uma revista semanal que esteja à mão. Procure por anúncios do Banco do Brasil. Na minha frente, um anúncio não assinado por nenhuma agência e publicado em revista de circulação nacional mostra uma foto de banco de imagem, onde uma jovem toca a água de um riacho. A foto ocupa 100% da área útil de duas páginas. O título, uma obviedade escrita de maneira tosca - como que apenas obedecendo a um briefing burocrático - utiliza a fonte Helvética ou uma genérica da família, como Arial. Nada especial. Nada comprado por 250 dólares na FontHaus. Olhando com atenção não vemos nada nesse anúncio que indique que, para fazê-lo, seja necessário recrutar gênios ou investir milhões de reais em estrutura física, equipamentos ou mesmo na compra de sofisticados softwares que não possam ser adquiridos pela internet em 12 vezes sem juros no cartão de crédito. Um redator mediano bem orientado, conectado à internet em um laptop barato com um programa gráfico qualquer, faria esse anúncio em, digamos, 15 minutos. Na minha agência para fazer algo tão trivial se alguém levar muito mais que isso (15 minutos) será advertido.
Se é assim, o que explica, então, que órgãos do governo federal exijam que, para atender sua conta, a agência precise ser, previamente, milionária? O que explica que se utilizem de critérios puramente financeiros para limitar a disputa em licitações que são, em tese, de melhor técnica e menor preço?
Pense comigo: se o critério é melhor técnica e menor preço, o que impede de atender contas do governo federal agências que, apresentando a melhor técnica e o menor preço, tenham uma conta bancária ou um balanço contábil menor que o das gigantes da publicidade no Brasil?
As maiores agências que atuam no Brasil são, via de regra, multinacionais que operam aqui em um arranjo negocial similar ao usado pelo sistema de franquia ou são empresas que já atuam em contas públicas a tanto tempo que se sentem parte da máquina, operando com sede fixa em Brasília desde o tempo em que só os candangos, JK e Lúcio Costa andavam por lá. É óbvio que as multinacionais - ou aquelas que agenciam o governo federal desde os primórdios de Brasília - têm um balanço financeiro maior, aditivado por recursos milionários advindos justamente do atendimento longevo de contas públicas ou do alinhamento internacional de contas, que abstrai méritos como técnica e preço, usando o critério de assimilação de contas pela franquia de marcas associadas aos grandes grupos publicitários que atuam globalmente. Veja bem: é um círculo vicioso. Os mais ricos ficam mais ricos. Os mais pobres permanecem pobres. Essa pirâmide é, sem dúvida, estimulada pela ausência de objetividade na seleção das agências que atendem o governo federal desde sempre. Do que adianta haver envelopes não identificados para a idéia criativa quando o sistema de corte já é discriminatório?
O edital do Banco do Brasil para contratação de três agências é um exemplo de como usar critérios puramente financeiros e contábeis - conta bancária e capital acumulado - para deixar na disputa apenas as gigantes do mercado, alijando do processo 95% das agências brasileiras.
A verba do Banco do Brasil é de expressivos R$ 420 milhões por ano, maior que o orçamento anual de muitas prefeituras. Para participar do certame não basta ter o certificado do Cenp - órgão que regula e autoriza o funcionamento das agências no Brasil - ou estar filiado ao Sindicato da categoria ou mesmo à ABAP - Associação Brasileira de Agências de Publicidade. Não basta ainda ter clientes e apresentar bom portifólio ou mesmo ter a melhor idéia criativa e o mais pertinente plano de comunicação ou de mídia. Para poder disputar a licitação do Banco do Brasil com chances de vencer é preciso apresentar uma "garantia contratual" equivalente a 1%, ou seja, R$ 4 milhões e apresentar, previamente, uma estrutura de atendimento em Brasília com 15 profissionais, comprometendo-se a montar uma central de mídia com mais 8 funcionários, quando a função de bureau de mídia não consta do contrato social de agências de publicidade no Brasil e o exercício dessa prática é combatido pela ABAP. Para finalizar o rol de exigências, a agência que pretenda atender ao Banco do Brasil deve apresentar patrimônio líquido no balanço equivalente a R$ 4,2 milhões e possuir clientes que rendam verba anual de 50 milhões. Quantas agências no Brasil podem atender a esse conjunto esdrúxulo de exigências?
Não é preciso ser doutor em Direito ou membro do Ministério Público para perceber o notório dirigismo desse edital. Não é um edital, é um "é de tal". Ele tem endereço, cep e nome do destinatário, já que a absoluta maioria das agências brasileiras atende a todas as condições técnicas para responder pela conta do Banco do Brasil mas não atende às "exigências contábeis" só respondidas por meia dúzia de agências do mercado.
Conclusão: o edital foi montado visando inviabilizar a isonomia, impedindo a igualdade de condições entre as agências de diferentes portes na disputa do que é fundamental: técnica e preço.
Alguém pode argumentar que uma conta de R$ 450 milhões não pode ser entregue a uma pequena agência regional. Por que não? Não se trata de um certame de "técnica e preço"? Se eu domino a técnica - o que pode ser comprovado com o repertório de peças, o atestado de clientes e de veículos e o certificado emitido pelo Cenp - e tenho o menor preço, por que não posso atender a uma conta que não exige mais do que um grupo de profissionais reunidos em uma estrutura com computadores, softwares específicos e conexão rápida de internet? Aliás, a própria exigência de quantitativo de profissionais (23, ao todo) é questionável, porque eu posso, como gestor, organizar com 12 profissionais o que outra empresa e outro gestor menos experiente ou baseado em outra matriz gerencial precisaria mobilizar 23 ou 30 pessoas. Agência de publicidade não é uma soma fria de contingente profissional mas uma organização dinâmica a partir da necessidade de cumprir a tarefa com a melhor técnica disponível pelo menor preço possível. O exército dos Estados Unidos tinha mais soldados, mais tecnologia e mais armas e equipamentos que os vietnamitas e perdeu a guerra para a melhor técnica dos vietcongs. Técnica e preço também envolve gestão e capacidade de produzir mais com menor investimento, desde que isso se dê sem prejuízo da qualidade na prestação de serviço. Aliás, para construir uma hidrelétrica, por exemplo, o número de operários não aparece no edital. Não se faz essa exigência. A forma de organizar o trabalho depende da capacidade da empreiteira de entregar a obra com a melhor técnica pelo menor preço. Por que então definir num edital de publicidade o quantitativo de profissionais? Aqui, mais um indício de dirigismo no certame.
Nos Estados Unidos, que têm um investimento publicitário anual de US$ 184 bilhões, as 20 maiores agências concentram apenas 15% do total. O bolo publicitário no Brasil é menor, mas está longe de ser desprezível: US$ 6 bilhões. Contudo, as 20 maiores agências detêm 60% desse montante. Das 1.800 agências existentes no Brasil, 1.318 têm pouco mais de meio por cento da receita. O governo federal, que tem muitas contas tão expressivas como a do Banco do Brasil usada aqui como exemplo, poderia usar sua lógica de cotas para estimular a geração de emprego no setor a partir do estabelecimento de critérios verdadeiramente isonômicos, permitindo que mais empresas possam prestar o mesmo serviço ao governo.
Vendo a propaganda do Banco do Brasil na TV, na mídia impressa e na web não posso deixar de pensar "eu faria melhor". Mas não apenas eu. Centenas de agências de todo porte poderiam fazer melhor. E mais barato. Se o critério fosse verdadeiramente pautado em técnica e preço. Mas não é.
Até quando?

segunda-feira, abril 25, 2011

Príncipe? Súditos? Plebéia? Afinal, em que século estamos?

Faz sentido, em pleno 2011, um regime que não privilegia mérito, talento, adesão política ou inteligência e sim herança genética?
A monarquia britânica - que paira acima do estado e das instituições democráticas - é um aleijão político e social, perpetuado às custas da queima de altas somas de dinheiro público para manter o luxo e a exposição de uma família que vive como milionária sem precisar trabalhar.
Essa ebulição da mídia em torno do casamento do príncipe William com sua amiga de faculdade Kate Middleton - chamada pelos jornais e telejornais, de maneira infame, de "plebéia" - é um patético espetáculo circense onde os palhaços estão na platéia, assistindo a perpetuação de uma estrutura anti-democrática sustentada num ideal romântico doentio, em nome de um equilíbrio de poder imaginário que, na verdade, começou a enfraquecer por volta do ano 1200.
A saúde política - ética e social - do ocidente no século XXI não pode conviver sem dor com esse parasitário e sombrio eco medieval que deveria incomodar a todos.

quinta-feira, abril 21, 2011

Campanha

A Rede Globo segue, célere, em sua campanha pela privatização dos aeroportos do Brasil.

segunda-feira, abril 18, 2011

Copa do Mundo: "Dá pra sentir o cheiro daqui"

Sou um torcedor de futebol esporádico mas já fui um desses que saem aos domingos para os estádios; que sofrem, se alegram e torcem por seu clube com fervor quase religioso. Até joguei por curto período no infantil de um dos grandes clubes locais e integrei a seleção de futebol de salão da escola onde conclui o ensino médio. Não sou, portanto, um leigo total no tema.
Me interesso, como todos os nascidos neste país, pelo destino da seleção canarinho; sofro com os pernas de pau que têm nos representado e até desejo boa sorte ao nosso escrete, mas tenho certeza (porque acompanho as partidas do campeonado europeu na tv) que precisaríamos de onze nilmares e onze gansos - é isso mesmo: vinte e dois craques em campo - para ter alguma chance de vencer uma copa contra a competência tática, o vigor físico e o talento em ascensão exibidos pelo futebol europeu.
Como apreciador da arte, tenho acompanhado as artimanhas dos cartolas internacionais em relação a Copa de 2014 com interesse redobrado. E me divirto com o seguidismo da imprensa de plantão ao discurso interesseiro da FIFA e da CBF.
Há algumas semanas o secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke, deu um piti público cobrando o governo brasileiro para que acelerasse as construções para a Copa. O governo brasileiro respondeu com um cronograma azeitado, afirmando que se não houver um terremoto como o do Japão por aqui as obras estarão concluídas quando elas precisam estar concluídas: em 2014. Isso não evitou muita gritaria na imprensa que nunca questiona nada a respeito de nada. Me diverte o fato de ninguém nas redações achar no mínimo estranho que um governo - não este governo, mas qualquer governo - pudesse se auto-sabotar de maneira tão imbecil, recusando-se a fazer as obras necessárias para garantir o certame mundial de futebol, evento de maior visibilidade global e cujo fracasso em um país como o nosso resultaria na desgraça eterna de governantes e partidos que por ventura cometessem tal heresia. O Brasil é um país de amantes do futebol, mas não só isso. É um dos países com maior taxa de desenvolvimento sustentável no mundo - melhor que Índia e China, que crescem sem reduzir a pobreza - e tem, por certo, recursos para tocar as obras necessárias.
A crítica da FIFA seria por alguma divergência com a CBF? Nada. A imprensa especializada noticiou fartamente que Valcke e Ricardo Teixeira tinham tirado férias juntos e que estavam "de bem". Então, o que estaria por trás dessa gritaria pública? É simples pressão da FIFA para que o governo brasileiro coloque mais dinheiro público nas mãos da CBF e das empreiteiras. Não sei se vocês sabem, mas mundialmente as empreiteiras têm envolvimento com, digamos, pressões multidirecionais por dinheiro público, cujo fluxo garante a lucratividade generosa desse ramo de negócio. Corrupção não é, como a jaboticabeira, um fenômeno brasileiro, ao contrário do que tentam nos ensinar a todos, buscando com isso macular a auto-estima nacional.
As razões do piti recente dos cartolas mundiais são as mesmas que explicam a escolha de cidades brasileiras sem nenhuma infraestrutura futebolística ou tradição de futebol, como Manaus-AM, para sediar jogos da Copa. Esse fim de mundo exige mais investimentos em infra-estrutura para garantir a realização do evento e, por ser mais distante e só poder ser acessada por avião, exige que mais dinheiro circule para garantir que os torcedores lá cheguem e se instalem. Belém, metrópole da floresta e porta de entrada da Amazônia, que tem acesso rodoviário e um estádio olímpico pronto, não precisaria construir um novo aeroporto ou um estádio do zero para garantir os jogos da Copa, mas apenas fazer pequenos ajustes no entorno do estádio e uma ampliação parcial no aeroporto, reduzindo assim o volume de recursos investidos, o envolvimento de empreiteiras e, portanto, o lucro da operação toda. Agora você entendeu. Não é de futebol que se trata, mas de capitalismo selvagem, de exacerbação dos lucros.
A percepção inicial dessa jogatina foi de Andrew Jennings, único jornalista a ser banido das coletivas de imprensa promovidas pela FIFA. Inglês, nascido, portanto, no país onde o futebol surgiu, o jornalista já escreveu dois livros sobre as sujeiras da Comitê Olímpico Internacional (COI) e um nessa mesma vibe sobre a Federação Internacional de Futebol Association. É dele a instigante e elucidativa frase: "Copa do Mundo? FIFA? Empreiteiras? Dá para sentir o cheiro daqui".

sexta-feira, abril 15, 2011

O mito, a imprensa e a insanidade

O mito é um relato, uma descrição sempre fabulosa, do que se supõe ter acontecido no passado impreciso. Trata-se, sobretudo, de uma narrativa, um modo, segundo Platão, de expressar verdades que escapam ao raciocínio. Uma fundamentação do mundo e das coisas do mundo, no qual se aponta uma origem. Esta origem pode ser tanto de algo particular quanto do próprio cosmos. Tem por agentes, divindades. Assim, o mito situa a divindade no Mundo. Graças à ação divina, tem-se o mundo e, através dela, todas as coisas que nele existem. Desse modo, explica-se a existência dos fenômenos naturais, dos seres vivos, das sociedades humanas. Tudo está contido nessa fabulação. Os povos antigos se valiam do mito como explicação primeira do próprio cosmos. O mito do herói é, grande medida, a base de grande parte das narrativas morais desde a Grécia antiga e, hoje, da narrativa publicizada pela imprensa.
Na mitologia grega os heróis ou semideuses eram personagens posicionados no meio do caminho entre os homens e os deuses. Possuíam poderes especiais que dava a eles capacidades que superavam os atributos humanos (força, inteligência, velocidade), mas eram, como os homens, mortais. De acordo com a mitologia clássica, os heróis eram filhos de deuses com seres humanos, a fusão do céu e da terra.
Os heróis de hoje são a pálida sombra dos heróis mitológicos. O conceito de heroísmo atual reflete as areias movediças da história. Baseia-se no mérito e na humanidade, valorizando a vitória sobre o mal, enaltecendo o altruísmo, mas reservando ao humano o que é humano. As divinidades heróicas desapareceram quando deixamos de acreditar nelas, como sugere a canção de Paulinho Moska. Essa curva conceitual se iniciou na Europa. O conceito moderno de herói surgiu ali, na época do Renascimento. A Idade Média anterior não valorizava as realizações humanas ao ponto de qualificá-las como heróicas. Vivendo tolhidos pelo "pecado do homem" instituído pela moral cristã, os escolásticos católicos romanos da Europa medieval enfatizavam a vida após a morte. A grandeza, toda ela, vinha de Deus, não do homem, pelo que os verdadeiros heróis cristãos eram os mártires, os missionários e os padres preparando-se para a salvação. O Renascimento redescobriu os clássicos da literatura grega e romana como Plutarco e Cícero, e alterou esta visão.
Com o advento da mídia de massas, o heroísmo democratizou-se no século 20 e a ênfase foi para os que a história esquece. Os heróis incógnitos de todos os dias passaram a ganhar notoriedade midiática. Acreditou-se que todo ser humano era intrinsecamente heróico. Mas ser um herói numa época em que a instantaneidade dos fatos domina os meios é ainda é mais complexo. A transparência exige infalibilidade. Falhas pessoais podem por vezes lançar sombras sobre as grandes ações aos olhos do público. Poucos estados modernos no Ocidente são sociedades homogêneas, capazes de se congregarem em torno de “heróis nacionais”. Os heróis modernos - como o operário pobre que, por força própria e tenacidade, tornou-se o presidente do Brasil mais bem avaliado de todos os tempos - encontram oposição. Uma cidadania politizada raramente partilha de um padrão unificado de herói.
A grande imprensa é uma fábrica de mitos e heróis. Todos reconhecem isso. O que poucos reconhecem é o tamanho da responsabilidade que isso trás.
As redações estavam em polvorosa naquela manhã de abril. Ali, a história um tanto turba de certo Wellington Menezes de Oliveira – o atirador que matou 12 crianças no ataque a uma escola em Realengo, na Zona Oeste da cidade. Onde havia demência e tragédia, perceberam a matéria-prima suficiente para construir um mito. Tinha a opção de construir o mito do herói que salvou as crianças, o policial militar que enfrentou o assassino; a opção de destacar as vítimas como heróis inocentes da luta contra a violência ou, simplesmente, escolher enaltecer o assassino, expor seu rosto e sua história em todos os telejornais, abrir as capas das revistas, as folhas de frente dos jornais. Três opções - o herói, as vítimas ou o algoz - uma só escolha.
Sabemos hoje que os mitos podem ser tanto os olimpianos quanto aqueles personagens alçados a esta condição de superestrelas da imprensa por sua conduta criminosa, por serem assassinos seriais, por seres prostitutas que se tornaram escritoras de sucesso, por serem engenhosos fugitivos de cadeias ou mesmo anônimos vulgares humanizados pelo Big Brother.
A cena diante da imprensa, que serviria para construir um mito naquela semana de abril de 2011, estava manchada com o sangue de muitos inocentes. Diante da pauta jornalística, a escola carioca invadida por um esquizofrênico que enfrentou seus demônios internos encarnados em modestas crianças uniformizadas. Ele atirou 60 vezes. Conduzido por seus desejos, queria matar 60 vezes. Matou uma dúzia de jovens, especialmente meninas. Feriu mais de uma dezena. Findou seus dias numa escada, perfurado por projéteis como os que vitimaram crianças e virou, nos dias que se sucederiam um mito tão visível que se incorporou ao tecido social, passou a marcá-lo, a manchá-lo, a imprimí-lo com sua face, com suas palavras, com sua voz, com seu perfil cuja história, a certa altura, parece querer justificar seu ato extremo por uma infância de discriminação e por seus pesadelos internos.
No final de semana que se sucedeu ao fato as revistas semanais de maior circulação e alcance trouxeram, todas elas, a foto de Wellington de Oliveira, o assassino de crianças inocentes, estampada na capa. Era a glória de uma mente perturbada, arrancada do anonimato de onde jamais sairia não fosse a covardia de abater quem não podia se defender.
"Um louco é um louco", se diz. Tentar entender, com mente sã, as motivações de um ato insano, é uma empreitada inglória. Podemos entender a origem - fisiológica, psicológica - do distúrbio. Mas não há parâmetro para nós que possa ser medido por alguém que atravessou a fronteira da sanidade. Como entender, então, que pessoas à frente de um órgão de imprensa, compreendendo que a busca de notoriedade está na raiz de atos extremos como os de Wellington, o recompensem com a capa de sua edição de domingo? Como entender que ele tenha recebido, ao preço de vidas de crianças inocentes, a encomenda que buscava? Sim, todos sabemos que a matéria-prima da notícia é o raro, o paradoxo, o imprevisto e o caos, aparente ou verdadeiro. Todos sabem que esta rede de notícias trabalhando sempre em busca da novidade tira do público a capacidade de avaliação e compreensão das informações e, em certa medida, anula a sua capacidade de produzir signos interpretantes necessários para o acompanhamento de todas as notícias. Que os consumidores fiquem hipnotizados diante da imprensa é rotineiro. Mas como entender que a imprensa, ela própria, feita por homens e mulheres, perca a sanidade ao ponto de transformar em herói e mito o assassino frio da escola do Realengo?
Por que a capa dessas revistas não prestou uma homenagem às crianças vitimadas? Por que não enalteceu os educadores que saíram em defesa das crianças? Por que não retratou o sargento Márcio Alves, que enfrentou e, sem saber o poder bélico do contendor, o alvejou, salvando com isso sabe-se lá quantas vidas?
O assassino não tinha uma motivação racional. Não procurava difundir uma causa, não queria libertar reféns, não estava a se vingar de bulling. Ele só queria desesperadamente sair do anonimato e enfrentar as vozes que o impeliam à ação. Os vídeos que deixou gravado em seu computador revelam isso. Quantos outros como ele seguirão esse exemplo?
O jornalista Arbex Jr fala, ao se referir-se à fabricação da notícia, em estratégia de sedução: "um dos desafios enfrentados diariamente pelos estrategistas da mídia consiste, precisamente, na elaboração de estratégias de sedução do telespectador/ leitor, operando em um inevitável espaço de ambigüidade do fato comunicativo. Trata-se de transformar a ambigüidade em seu oposto – o consenso aparente, imposto, fabricado por técnicas de propaganda".
É disso que se trata. A face nua do assassino seduz, vende revistas. Seu olhar vazio denota mistério. Não se trata, então, de fazer o certo, de educar, de exercer a função pedagógica que a mídia democrática deveria ter. Trata-se de contar os trocados. É o cobre em troca de sangue, como se dizia no período medieval.
Wellington, o insano, imolou-se. Vestiu seu uniforme de combate para matar crianças a sangue frio. Ele criou um personagem e o encarnou até o fim. Só a fama e a esquizofrenia - qual a fronteira entre elas? - permitem a criação dessa espécie de personagem permanente. Se o ídolo precisa ter certas características que o distanciam dos simples mortais, se ele precisa ser alguém com habilidades extraordinárias, como enquadrar Wellington na categoria do mito?
Ocorre que vivemos a era da massificação do mito. Um bom exemplo disso são os reality shows, onde as câmeras de TV transformam em celebridades personagens comuns e sem importância, dando relevo às mais simples rotinas diárias, como dormir, comer, escovar os dentes, cantar, abraçar coqueiros ou decorar a casa. O nome Big Brother foi apropriado do romance “1984”, de George Orwell, que retratava um estado totalitário onde cada cidadão era vigiado através um aparelho de TV pelo qual interagia com o grande ditador, que se apresentava como "o Grande Irmão".
Arbex Jr fala da existência de um jogo narcísico nestes processos de identificação dos massa media: "Há uma elevada dose de narcisismo nesses processos de identificação. Mesmo inconscientemente, escolho os aspectos que merecem ser iluminados na composição de tal ou qual personagem, os aspectos que melhor me descrevam para mim mesmo e para os outros de acordo com aquilo que penso a meu respeito. Ou, ao contrário, escolho a figura que deve ser odiada por se opor à minha imagem ideal".
No caso de Realengo, a imprensa, essa fábrica de mitos e de narrativas heróicas, optou por dar ao assassino a fama pela qual ele viveu, matou e morreu.
O preço? A vida e a dor de muitos inocentes.