terça-feira, abril 26, 2011

Publicidade: onde foi parar a isonomia?

O escopo legal é claro. Licitação é o procedimento formal em que a Administração Pública convoca, mediante condições estabelecidas em ato próprio (edital ou convite), empresas interessadas na apresentação de propostas para o oferecimento de bens e serviços.
Quando chama uma licitação, o ente público objetiva garantir a observância do princípio constitucional da isonomia - igualdade de condições entre os interessados - e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, de maneira a assegurar oportunidade igual a todos os interessados e possibilitar o comparecimento ao certame ao maior número possível de concorrentes.
Agora pesquise na internet ou pegue uma revista semanal que esteja à mão. Procure por anúncios do Banco do Brasil. Na minha frente, um anúncio não assinado por nenhuma agência e publicado em revista de circulação nacional mostra uma foto de banco de imagem, onde uma jovem toca a água de um riacho. A foto ocupa 100% da área útil de duas páginas. O título, uma obviedade escrita de maneira tosca - como que apenas obedecendo a um briefing burocrático - utiliza a fonte Helvética ou uma genérica da família, como Arial. Nada especial. Nada comprado por 250 dólares na FontHaus. Olhando com atenção não vemos nada nesse anúncio que indique que, para fazê-lo, seja necessário recrutar gênios ou investir milhões de reais em estrutura física, equipamentos ou mesmo na compra de sofisticados softwares que não possam ser adquiridos pela internet em 12 vezes sem juros no cartão de crédito. Um redator mediano bem orientado, conectado à internet em um laptop barato com um programa gráfico qualquer, faria esse anúncio em, digamos, 15 minutos. Na minha agência para fazer algo tão trivial se alguém levar muito mais que isso (15 minutos) será advertido.
Se é assim, o que explica, então, que órgãos do governo federal exijam que, para atender sua conta, a agência precise ser, previamente, milionária? O que explica que se utilizem de critérios puramente financeiros para limitar a disputa em licitações que são, em tese, de melhor técnica e menor preço?
Pense comigo: se o critério é melhor técnica e menor preço, o que impede de atender contas do governo federal agências que, apresentando a melhor técnica e o menor preço, tenham uma conta bancária ou um balanço contábil menor que o das gigantes da publicidade no Brasil?
As maiores agências que atuam no Brasil são, via de regra, multinacionais que operam aqui em um arranjo negocial similar ao usado pelo sistema de franquia ou são empresas que já atuam em contas públicas a tanto tempo que se sentem parte da máquina, operando com sede fixa em Brasília desde o tempo em que só os candangos, JK e Lúcio Costa andavam por lá. É óbvio que as multinacionais - ou aquelas que agenciam o governo federal desde os primórdios de Brasília - têm um balanço financeiro maior, aditivado por recursos milionários advindos justamente do atendimento longevo de contas públicas ou do alinhamento internacional de contas, que abstrai méritos como técnica e preço, usando o critério de assimilação de contas pela franquia de marcas associadas aos grandes grupos publicitários que atuam globalmente. Veja bem: é um círculo vicioso. Os mais ricos ficam mais ricos. Os mais pobres permanecem pobres. Essa pirâmide é, sem dúvida, estimulada pela ausência de objetividade na seleção das agências que atendem o governo federal desde sempre. Do que adianta haver envelopes não identificados para a idéia criativa quando o sistema de corte já é discriminatório?
O edital do Banco do Brasil para contratação de três agências é um exemplo de como usar critérios puramente financeiros e contábeis - conta bancária e capital acumulado - para deixar na disputa apenas as gigantes do mercado, alijando do processo 95% das agências brasileiras.
A verba do Banco do Brasil é de expressivos R$ 420 milhões por ano, maior que o orçamento anual de muitas prefeituras. Para participar do certame não basta ter o certificado do Cenp - órgão que regula e autoriza o funcionamento das agências no Brasil - ou estar filiado ao Sindicato da categoria ou mesmo à ABAP - Associação Brasileira de Agências de Publicidade. Não basta ainda ter clientes e apresentar bom portifólio ou mesmo ter a melhor idéia criativa e o mais pertinente plano de comunicação ou de mídia. Para poder disputar a licitação do Banco do Brasil com chances de vencer é preciso apresentar uma "garantia contratual" equivalente a 1%, ou seja, R$ 4 milhões e apresentar, previamente, uma estrutura de atendimento em Brasília com 15 profissionais, comprometendo-se a montar uma central de mídia com mais 8 funcionários, quando a função de bureau de mídia não consta do contrato social de agências de publicidade no Brasil e o exercício dessa prática é combatido pela ABAP. Para finalizar o rol de exigências, a agência que pretenda atender ao Banco do Brasil deve apresentar patrimônio líquido no balanço equivalente a R$ 4,2 milhões e possuir clientes que rendam verba anual de 50 milhões. Quantas agências no Brasil podem atender a esse conjunto esdrúxulo de exigências?
Não é preciso ser doutor em Direito ou membro do Ministério Público para perceber o notório dirigismo desse edital. Não é um edital, é um "é de tal". Ele tem endereço, cep e nome do destinatário, já que a absoluta maioria das agências brasileiras atende a todas as condições técnicas para responder pela conta do Banco do Brasil mas não atende às "exigências contábeis" só respondidas por meia dúzia de agências do mercado.
Conclusão: o edital foi montado visando inviabilizar a isonomia, impedindo a igualdade de condições entre as agências de diferentes portes na disputa do que é fundamental: técnica e preço.
Alguém pode argumentar que uma conta de R$ 450 milhões não pode ser entregue a uma pequena agência regional. Por que não? Não se trata de um certame de "técnica e preço"? Se eu domino a técnica - o que pode ser comprovado com o repertório de peças, o atestado de clientes e de veículos e o certificado emitido pelo Cenp - e tenho o menor preço, por que não posso atender a uma conta que não exige mais do que um grupo de profissionais reunidos em uma estrutura com computadores, softwares específicos e conexão rápida de internet? Aliás, a própria exigência de quantitativo de profissionais (23, ao todo) é questionável, porque eu posso, como gestor, organizar com 12 profissionais o que outra empresa e outro gestor menos experiente ou baseado em outra matriz gerencial precisaria mobilizar 23 ou 30 pessoas. Agência de publicidade não é uma soma fria de contingente profissional mas uma organização dinâmica a partir da necessidade de cumprir a tarefa com a melhor técnica disponível pelo menor preço possível. O exército dos Estados Unidos tinha mais soldados, mais tecnologia e mais armas e equipamentos que os vietnamitas e perdeu a guerra para a melhor técnica dos vietcongs. Técnica e preço também envolve gestão e capacidade de produzir mais com menor investimento, desde que isso se dê sem prejuízo da qualidade na prestação de serviço. Aliás, para construir uma hidrelétrica, por exemplo, o número de operários não aparece no edital. Não se faz essa exigência. A forma de organizar o trabalho depende da capacidade da empreiteira de entregar a obra com a melhor técnica pelo menor preço. Por que então definir num edital de publicidade o quantitativo de profissionais? Aqui, mais um indício de dirigismo no certame.
Nos Estados Unidos, que têm um investimento publicitário anual de US$ 184 bilhões, as 20 maiores agências concentram apenas 15% do total. O bolo publicitário no Brasil é menor, mas está longe de ser desprezível: US$ 6 bilhões. Contudo, as 20 maiores agências detêm 60% desse montante. Das 1.800 agências existentes no Brasil, 1.318 têm pouco mais de meio por cento da receita. O governo federal, que tem muitas contas tão expressivas como a do Banco do Brasil usada aqui como exemplo, poderia usar sua lógica de cotas para estimular a geração de emprego no setor a partir do estabelecimento de critérios verdadeiramente isonômicos, permitindo que mais empresas possam prestar o mesmo serviço ao governo.
Vendo a propaganda do Banco do Brasil na TV, na mídia impressa e na web não posso deixar de pensar "eu faria melhor". Mas não apenas eu. Centenas de agências de todo porte poderiam fazer melhor. E mais barato. Se o critério fosse verdadeiramente pautado em técnica e preço. Mas não é.
Até quando?