segunda-feira, abril 23, 2012

Cleta da Silva Cavalcante


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

"Canção Amiga", poema de Carlos Drummond de Andrade, virou canção na voz de Milton Nascimento. Eu era muito jovem quando toquei e cantei essa canção para minha mãe. Ela sorriu e disse "É linda. Cante de novo". Domingo, 22 de abril, às quatro da manhã minha mãe silenciou. Não terei mais seu sorriso. A canção amiga em que ela se reconheceu calou. Seu silêncio, um grito eterno ecoando dentro de mim. A morte de minha mãe é, em minha vida, um gigantesco desastre natural. O planeta não é mais o mesmo. Eu sou um dinossauro que viu o meteoro gigante se aproximar da terra e explodir no chão, produzindo um ruído tão alto, tão intenso, que se fez silêncio. Sobrevivente a isso, sei que nada será igual depois que esse silêncio ensurdecedor passou a imperar. Cleta da Silva Cavalcante, minha mãe, me ensinou quase tudo de bom que eu aprendi na vida. Se com meu pai aprendi o valor do trabalho, do companheirismo, da ética, do compromisso à palavra, com ela aprendi o respeito às diferenças, a virtude da ajuda, a solidariedade, o apiedamento aos necessitados, a indignação contra a injustiça, o cuidado com as crianças, a lágrima fácil diante das coisas. Ela foi mãe afetuosa, esposa amorosa, amiga dedicada, avó atenciosa, mantendo-se sempre serena, tranquila, alegre, confiante. Quando fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional pela ditadura militar, meus pais não entendiam direito como um menino como eu, que só queria justiça, podia ser perseguido pelo Estado. Mas me apoiaram. Ela me disse "seja lá o que você fez, deve ter sido para ajudar os outros". Esta é a imagem dela que fica: a confiança protetora, a mão acolhedora, que protege e que abraça. Eu a beijei pela última vez naquele domingo cor de chumbo, antes que seu corpo frágil descesse ao túmulo para repousar ao lado do meu pai, que se foi em 2002. Desde 2005 minha mãe enfrentava com dignidade incomum uma batalha tenaz contra o Mal de Alzheimer, uma terrível doença degenerativa incurável que afeta vorazmente o cérebro e a memória. Em que pese o avanço da doença, ela preservou meu nome como um tesouro em sua mente. E o repetia, para que eu soubesse ainda estar ali o seu afeto. Viveu e morreu dignificando a vida. E será eternamente amada.