quarta-feira, novembro 21, 2007

Mutação Global e Guerrilha Comunicativa

Com atraso de um ano, dado o acúmulo de tarefas e a sobrecarga de trabalho, lançarei em janeiro de 2008 meu livro "O que é comunicação militante", uma releitura, ou melhor, uma atualização do conceito que venho divulgando desde a experiência de comunicação alternativa levada adiante na administração democrática e popular de Belém (1997-2004). O texto abaixo é o primeiro capítulo do trabalho que está no prelo. A edição é da Labor Editorial.

1. Mutação Global e Guerrilha Comunicativa

A história das comunicações é, num sentido muito real, a história da civilização” John Dewey.

A comunicação é onipresente. Quem tem a palavra constrói identidades pessoais ou sociais. Cria modelos a serem seguidos, delimita e demarca a prática social. A informação se multiplicou tanto e se tornou tão abundante que já virou o quinto elemento, depois do ar, da água, da terra e do fogo. Essa evidência resulta que alguns acentuem o fato como uma “invenção” (A. Mattelart), uma “revolução” (P. Griset), uma “utopia” (Ph. Breton) e mesmo uma “explosão“ (Ph. Breton e S. Proulx) e outros se questionem sobre o valor das idéias na história ou ainda a razão de uma idéia triunfar sobre outra, criando uma nova disciplina – a midiologia (R. Débray).
Já em 1942, Norbert Wiener definiu o homo communicans, bem antes de Marshall McLuhan falar, em 1962, na “Galáxia Gutenberg“. Hoje vários são os autores que têm procurado definir a sociedade de comunicação como uma nova esperança racionalista tal como ela se desenvolve desde o século XVI, veiculando a idéia de progresso, de difusão da informação, do fim das barreiras entre os homens. Contudo, para além das utopias, os meios de comunicação não se desenvolveram à parte dos mecanismos de dominação política e prevalência econômica. Ao contrário. Na era da globalização em tempo real – na era da convergência - a liberdade de expressão deixou de ser uma questão periférica para se tornar um problema central.
É um lugar-comum dizer que a sociedade está em transformação. Toda sociedade está. Sempre esteve. A modificação fundamental na transformação que testemunhamos é a velocidade com que ela se desenvolve, integrando diferentes mecanismo de interação entre as pessoas e de comunicação multilateral. Aquilo que Guy Debord denunciou, na década de 60, como a “sociedade do espetáculo” tornou-se uma experiência radical a qual devemos chamar, a partir de agora, de “sociedade hipermediatizada” onde efetivamente a relação social entre as pessoas passou a ser mediada pela imagem, pela representação e, em certa medida, pelo simulacro.
O fato conhecido de cerca de duzentas empresas controlarem 30% do comércio e 25% da produção mundial significa a existência de uma elite concentrada e com poder global. Ela submete os estados às suas leis, ramifica-se em milhares de pessoas que asseguram a sua gestão e em outras tantas que detêm o seu controle econômico e político. Nesse contexto, as transformações na comunicação de massa, a edificação de uma sociedade hipermediatizada ao mesmo tempo resultado e resultante da danação do modo de produção existente, têm sido baseadas numa forte concentração dos meios que, cada vez mais, pertencem a grandes grupos midiáticos. Trata-se de uma concentração contínua, que atravessa todo o tecido social e precisa ser combatida.
Contra este poder excludente e alienante, criou-se um movimento multitudinário cuja militância transforma a resistência em contra-poder e transmuta a rebelião num processo de construção de um contra-discurso, colocando em pauta a democratização dos meios de comunicação como bandeira fundamental. O objetivo deste manifesto é provocar. É superar o diletantismo acadêmico e o vandalismo ingênuo através da mobilização e da organização de um movimento multi-facetário pela elaboração e propagação de uma nova consciência, criando uma força cívica cidadã, a que chamo de “quinto poder”, dedicado a elaborar e difundir uma forma alternativa de comunicação, efetivamente social, a comunicação militante. Esses novos desafios obrigam a repensar o papel da comunicação, fundamentalmente quando percebemos que o acréscimo de informação não só não acarreta um acréscimo de conhecimento como provoca, mesmo, o seu decréscimo; assim, e segundo Baudrillard, estamos num momento em que à “inflação da informação” corresponde uma “deflação do sentido“. A insistência em se distanciar dos fatos para analisá-los acaba fazendo com que não os analisemos, soterrados que somos por uma avalanche de informações desconexas. Um processo análogo se dá na economia. O filósofo Robert Kurtz, redator e co-editor da revista teórica "Krisis", em seu trabalho “6 Teses sobre o caráter das novas guerras de ordenamento mundial” caracteriza que a terceira revolução industrial, causada pela microelectrónica, começou nos anos oitenta colocando um limite histórico intrínseco à valorização do trabalho vivo. A febre de consumo nos grandes mercados mundiais, o poder corporativo das marcas globais não acarreta um acréscimo na melhoria de vida das grandes massas como acarreta, mesmo, o seu decréscimo; assim, estamos num universo em que as percepções crescentes das marcas e do universo milionário do consumo entram em contradição com a explosão da miséria e do desemprego para faixas cada vez mais largas da população, frutos das crises cíclicas de superprodução que se processam em forma de espiral, uma cada vez mas próxima da imediatamente anterior, retro-alimentando desigualdades crescentes. A busca constante da intensidade e da produtividade do trabalho; a procura incansável de novos mercados; a tendência a introduzir inovações tecnológicas para economizar força de trabalho (aumento da composição orgânica do capital); a concentração e a centralização do capital; a queda tendencial nas taxas de lucro; a eclosão periódica de crises de superprodução; a tendência implacável à internacionalização do capital; são leis intrínsecas do capitalismo que agem proporcionando a socialização objetiva do trabalho. Da socialização objetiva do trabalho e da sua internacionalização derivou-se a socialização das lutas, do enfrentamento ao modelo multiplicador de desigualdades. Esse quadro abriu espaço para movimentos em rede pela universalização da cidadania. Foi o que ocorreu no dia 26 de setembro de 2000, quando todas as atenções se voltaram para Praga. Enquanto o FMI e o Banco Mundial se reuniam a portas fechadas, as ruas da capital tcheca foram tomadas pelos manifestantes. zapatistas, estudantes, anarquistas, comunistas, trotskistas, sem-terras, sindicalistas, pacifistas, artistas e todos os demais ativistas, protagonizando uma histórica batalha antiglobalização, que ganhou, de uma testemunha ocular, a feliz denominação de “guerrilha surreal”. "Para conhecer os príncipes”, dizia Maquiavel, “é preciso ser povo". Os protestos contra a hegemonia econômica imposta pelos organismos financeiros internacionais forjaram sua própria cultura, seu próprio fluxo de informação e meios próprios de comunicação. Em Praga, os ativistas enfrentaram a polícia com todas as armas possíveis: à hierarquia opuseram a irreverência; às marchas, a dança; às sirenes, os gritos, às fardas e uniformes, as camisetas e as cores. Mas o que sobressaiu de maneira relevante foi o modo como o movimento, marginal em relação aos grandes conglomerados de mídia, ganhou manchetes em todos os principais jornais e telejornais do mundo, inaugurando um modo militante de comunicar que ultrapassou fronteira e ocupou, no peito e na raça, terrenos generosos no latifúndio simbólico dos grandes meios de comunicação de massas que se fossem pagos consumiriam fortunas equivalentes ao Produto Interno Bruto de muitos países. Essa guerrilha comunicativa nada mais é do que uma prática expandida do que desde então denominamos “comunicação militante”: a luta para quebrar o monopólio da fala, descentralizar a produção simbólica e assegurar a diversidade das mensagens através do uso de meios baratos e abrangentes de comunicação. Alguns podem achar que é uma nova denominação para o que se convencionou chamar, nas décadas de 70 e 80 do século XX, de “comunicação popular”. Terminantemente, não é. Quando nos referimos ao povo ou popular, no conceito que a esquerda marxista latino-americana deu ao termo, queremos dizer que não se trata da “massa“ indistinta, duma simples multidão de átomos, de simples grupos fragmentados, mas de um sujeito, de uma totalidade que não implica a anulação de indivíduos e grupos, mas sim a sua articulação num projeto comum. Povo é “síntese constituída” (Negri), é sujeito. Não é fácil para um povo constituir-se como tal, criar-se como povo. O dominador sempre fará todos os esforços possíveis para o fragmentar, dividir, atomizar, numa palavra, para o reduzir a uma multidão. Por isso, antes da comunicação popular virá a comunicação militante, a comunicação de trincheira, de combate. A comunicação popular virá com o poder, a comunicação militante é resultado do contra-poder. É correto dizer que o conceito que inauguramos tem origem remota na teorização de McLuhan (1972), que, ressaltando o aspecto dos formatos da comunicação, afirma: "o meio é a mensagem". Como nós, ele entende medium num sentido amplo, como veículo, canal, ambiente, incluindo os códigos compartilhados pelos destinatários. O medium co-produz a mensagem e a informação aparece em determinados formatos, quer na vida cotidiana, quer nos veículos tradicionalmente usados como mass-mídia. Tais formatos já fazem, por si só, sentido para o espectador. “O que é comunicação militante”, escrito originalmente como um paper para debate interno em um restrito grupo de militantes de esquerda, continha as impressões de um observador atento, mas desprovidas de qualquer pretensão de rigor técnico, a qual só um estudo específico e mais profundo permitiria naturalmente acalentar. O texto foi publicado pela primeira vez nas últimas páginas de uma coletânea assinada por Ruth Vieira e Francisco Cavalcante, denominada justamente “Comunicação Militante” (Labor Editorial, 2001), onde são relatadas as diversas experiências de comunicação praticadas na primeira administração de esquerda a assumir a prefeitura de Belém do Pará, a mais populosa capital da Amazônia brasileira, de 1997 a 2004. A publicação deste panfleto com ligeiro acréscimo ao original deve-se à necessidade de ampliar o debate urgente sobre mídia e poder no desafiador cenário da mundialização, em busca de ferramentas de comunicação que ajudem a construir um contra-poder midiático - um arsenal comunicativo de novo tipo e uma nova forma de informação diversa, plural e humanista, para além da chamada mídia de massas.