sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Contra os Direitos Autorais

Copyleft é a subversão da propriedade do pensamento. Enquanto a publicação aberta é uma característica bastante conhecida do site do Centro de Mídia Independente (1) (CMI), a idéia irmã, de “copyleft”, de subversão dos direitos autorais, é ainda muito pouco conhecida e discutida. No rodapé da página principal do site, ao invés da tradicional nota lembrando os direitos autorais, lemos o seguinte: “(C) Centro de Mídia Independente. É autorizada a reprodução, na rede ou em outra parte, para uso não comercial, desde que citada a fonte.” Ao invés de restringir a divulgação, a nota de “copyleft” (um trocadilho com “copyright”), permite e mesmo estimula a distribuição posterior da informação que o site veicula. Essa política de “copyleft” faz parte de um movimento amplo de oposição aos direitos de propriedade intelectual (2).


COPYRIGHT - Embora nossa sociedade tenha assistido um longo debate sobre a propriedade privada nos últimos dois séculos, pouco ainda foi dito sobre o caráter peculiar desse estranho tipo de propriedade que é a propriedade intelectual. Em geral, a propriedade é justificada como uma garantia de uso e disposição do proprietário àquilo que lhe é de direito (por herança ou por trabalho). Em outras palavras, alguém que adquiriu uma propriedade está garantindo para si a utilização de um bem – e está tendo essa garantia porque fez por merecer. Se alguém possui uma casa, por exemplo, a propriedade privada dessa casa garante ao dono o acesso a ela quando bem entender e sua utilização para os fins que escolher (além de poder dispô-la – vendê-la, emprestá-la, etc. – se desejar). Se essa casa fosse compartilhada com outras pessoas, no momento em que essas outras pessoas a estivessem utilizando, ele estaria privado daquela casa que fez por merecer. Quando uma pessoa utiliza a casa, a outra não consegue utilizá-la (pelo menos não na sua totalidade). Isso vale para todos os tipos de bens materiais.
Mas o caso da propriedade intelectual é diferente e seus teóricos sabiam disso desde o princípio. A legislação sobre a propriedade intelectual tem origem na Inglaterra, numa lei de 1710, mas foi nos Estados Unidos que ela foi teorizada e consolidada pelos “pais fundadores”. Esses homens que fundaram a república americana e escreveram a constituição sabiam que a propriedade intelectual era diferente da propriedade material. Eles sabiam que canções, poemas, invenções e idéias não têm a mesma natureza dos objetos materiais que eram garantidos pelas leis de proteção à propriedade. Se quando eu uso uma bicicleta, a outra pessoa é privada do seu uso (porque, a princípio, duas pessoas não podem usar a mesma bicicleta ao mesmo tempo – principalmente se vão para lugares diferentes), quando eu leio um poema, a coisa é diferente. Eu posso ler o poema ao mesmo tempo em que o “dono” do poema e meu ato de ler não apenas não priva como não atrapalha em nada a leitura dele. Thomas Jefferson, um dos pais fundadores e um dos primeiros responsáveis pelo escritório de patentes dos Estados Unidos discutiram isso numa carta famosa que, a certa altura, diz: “Se a natureza produziu uma coisa menos suscetível de propriedade exclusiva que todas as outras, essa coisa é a ação do poder de pensar que chamamos de idéia, que um indivíduo pode possuir com exclusividade apenas se mantém para si mesmo. Mas, no momento em que a divulga, ela é forçosamente possuída por todo mundo e aquele que a recebe não consegue se desembaraçar dela. Seu caráter peculiar também é que ninguém a possui de menos, porque todos os outros a possuem integralmente. Aquele que recebe uma idéia de mim recebe instrução para si sem que haja diminuição da minha, da mesma forma que quem acende um lampião no meu, recebe luz sem que a minha seja apagada.”(3)
Dessa forma, não parecia haver motivo para se transformar idéias (e canções, livros e invenções) em propriedade. No entanto, o mesmo Thomas Jefferson se lembra da necessidade de se estimular a criação de invenções “para o bem do público” e esse estímulo – para ele – só poderia ser a recompensa (com bens materiais) ao “criador”. As idéias, justamente porque têm a característica de uma vez expressas serem assimiladas por todos que a recebem, devem ser especialmente protegidas, para que os criadores de idéias não fiquem desestimulamos de criá-las e expressá-las. Aquele que cria a idéia deve ter o direito sobre ela, de forma que toda a vez que alguém a utilize ou a receba, ele tenha uma recompensa material. O autor de um livro deve receber os direitos autorais pela publicação e o inventor, o direito pelo uso da patente. Assim, diz a constituição americana: “O Congresso deve ter o poder de promover o progresso das ciências e das artes úteis assegurando aos autores e inventores, por um período limitado, o direito exclusivo aos seus escritos e descobertas.” (4) Com o direito exclusivo às suas criações, os autores e inventores podem explorar comercialmente as suas idéias e conseguir a justa recompensa pelo seu esforço e talento. A recompensa é o estímulo para que o criador produza ainda mais e a sociedade progrida em direção ao bem comum.
Mas esse mesmo bem comum pode ser ameaçado pela proteção excessiva à propriedade das idéias. Se se cria muitos entraves, então, pode-se impedir, ao invés de promover a “instrução mútua e a melhoria das condições”. Partindo de sua experiência no escritório de patentes, Jefferson observa que “considerando o direito exclusivo de invenção como dado, não pelo direito natural, mas para o benefício da sociedade”, há inúmeras “dificuldades em separar com clareza as coisas que valem a pena para o público o embaraço de uma patente exclusiva, daquelas que não valem.” Em outras palavras, a questão é até que ponto a introdução do direito de propriedade intelectual, ao invés de promover, termina por constranger o progresso do saber, da cultura e da tecnologia. Se os critérios para se estabelecer a propriedade são rígidos e a duração do direito longa demais, então, pode-se dificultar o aproveitamento social da criação. Esta é a questão fundamental discutida em toda a legislação sobre a extensão do direito de propriedade intelectual.
Na Inglaterra, a pioneira em estabelecer uma legislação de propriedade intelectual, o debate começou no século XVIII e percorreu os três séculos seguintes. Em 1841, foi feita mais uma tentativa de ampliar a duração dos direitos autorais, que, nesse período, cessavam depois de 20 anos da morte do autor. O famoso historiador Thomas Babington Macaulay fez uma histórica intervenção no Parlamento no qual criticava um projeto de lei que propunha ampliar o direito autoral para 60 anos após o falecimento do autor. Seguindo a longa tradição anglo-saxã que legislava sobre o tema, Macaulay balanceava o direito do autor em ser remunerado e o interesse social de usufruir as criações o quanto antes e com o menor custo. Segundo ele, o sistema de direitos autorais, tem vantagens e desvantagens e por isso não é preto, nem branco, mas cinza. O direito exclusivo de propriedade intelectual, para ele, no fundo é ruim, porque cria um “monopólio”, o que encarece o “produto” e o torna menos acessivel a todos. Mas, por outro lado, ele é bom, porque permite que o criador seja remunerado pela criação. De um lado, temos a necessidade do monopólio na exploração comercial de um livro – de forma que apenas um editor possa lançar e vender o livro. Mas, por outro, esse monopólio que sustenta o autor, prejudica a sociedade, encarecendo o livro e tornando sua difusão mais difícil. Em suas palavras, “é bom que os autores sejam remunerados e a forma menos excepcional de serem remunerados é pelo monopólio. No entanto, o monopólio é ruim. Para que se consiga o que é bom, devemos nos submeter ao que é ruim.”
Toda a questão para Macaulay (e para toda a tradição anglo-saxã dominante) era saber a medida exata em que a submissão do bom ao ruim era proveitosa: “o ruim não deve durar um único dia a mais do que o necessário para assegurar o que é bom.” Mas quanto deve durar esse tempo? O projeto em trâmite no parlamento pretendia ampliar o direito de 20 para 60 anos após a morte do autor. Segundo Macaulay, esse período era muito grande e não trazia nenhuma vantagem em relação ao período vigente de 20 anos (que ele dá a entender que já era excessivo). Se o objetivo do direito autoral é estimular a criação, uma recompensa tão distante e após a morte não parecia ser eficiente. Macauly argumenta: “Sabemos bem quão pouco somos afetados pela perspectiva de vantagens distantes, mesmo quando são vantagens que nós mesmos aproveitaremos. Mas uma vantagem que será aproveitada mais de meio século depois que morrermos, por pessoas que talvez não conhecemos, que talvez não tenham nascido, por pessoas que finalmente não tenham conexão conosco não parece ser motivo algum para a ação [criadora].” (5)
Com pequenas mudanças de ênfase, o debate sobre a propriedade intelectual permaneceu sempre marcado pela disputa sobre o ponto de equilíbrio entre o estímulo à criação e o interesse social de usufruir o resultado da criação (6). A primeira lei inglesa, de 1710, dava ao criador o direito exclusivo sobre um livro por 14 anos e, se o autor ainda estivesse vivo quando o direito expirasse, poderia renovar o direito por mais 14 anos. A legislação americana baseou-se na inglesa e nos atos de patentes e de direitos autorais de 1790 retomou os períodos de 14 anos, renováveis por outros 14. Em 1831, o Congresso americano revisou as leis de direitos autorais substituindo o período inicial de 14 anos, por um de 28, renovável por mais 14. Em 1909, as leis foram novamente revisadas e o período foi mais uma vez ampliado para 28 anos iniciais renováveis por mais 28 anos.
Mais recentemente, porém, com o aumento do poder da indústria cultural, a extensão do direito à propriedade intelectual ultrapassou de longe os vinte anos após a morte que incomodavam o historiador Thomas Macaulay em 1841. As pressões começaram em 1955, quando o Congresso americano autorizou o escritório de patentes a desenvolver um estudo com vistas a revisar as leis de direito autoral vigentes. O relatório final recomendava a ampliação do período de renovação de 28 para 48 anos. As organizações de escritores e a indústria cultural (principalmente as editoras), no entanto, insistiam num período que cobrisse a vida do autor mais 50 anos após a sua morte. O pretexto para esse período longuíssimo era a “modernização” das leis de direitos autorais e a adequação delas à Convenção de Berne (7). Como a disputa não parecia poder ser resolvida no curto prazo e os direitos estavam começando a expirar, os lobbistas conseguiram um adiamento extraordinário do vencimento dos direitos que estavam por expirar, do ano de 1962 para o ano de 1965, enquanto a matéria não era definitivamente votada no Congresso. Apesar das reiteradas objeções do Departamento de Justiça, a polêmica em torno do assunto levou a outros oito adiamentos “extraordinários”, de 1965 para 1967, de 1967 para 1968, de 1968 para 1969, de 1969 para 1970, de 1970 para 1971, de 1971 para 1972, de 1972 para 1974 e de 1974 para 1976, tudo em nome dos interesses dos detentores dos direitos (normalmente empresas e não os descendentes dos autores) e em detrimento do domínio público. Em 1976, finalmente, o Congresso aprovou uma nova e “moderna” lei de direitos autorais, atribuindo um período de vigência do direito por toda a vida do autor mais 50 anos e para trabalhos encomendados por empresas, um período de 75 anos após a publicação ou 100 anos após a criação, o que fosse mais curto.
Em meados dos 90, no entanto, mais uma vez umas séries de preciosas obras em poder da indústria cultural aproximaram-se do prazo de expiração dos direitos autorais. E, mais uma vez, a legislação internacional “mais moderna” (8) serviu de pretexto para a ampliação dos prazos de vigência dos direitos. Desde o final dos anos 80, empresas como a Walt Disney e a Time Warner começaram a preocupar-se com algumas de suas obras cujos direitos autorais cessariam nos primeiros anos do novo século. A Disney preocupava-se com o personagem Mickey Mouse que entraria em domínio público em 2003, com o Pluto que entraria em 2005 e com o Pateta e o Pato Donald que entrariam em 2007 e 2009, respectivamente. Já a Warner preocupava-se com o personagem Perna Longa cujos direitos expiravam em 2015 e com uma série de obras cujos direitos possuia, entre elas, o filme “E o vento levou” que expirava em 2014 e uma série de músicas de George Gershin, entre elas a canção “Rhapsody in Blue” e a ópera “Porgy and Bess”, cujos direitos expiravam em 1998 e 2010, respectivamente.
Temendo sofrer grandes prejuízos pela perda dos direitos autorais, Disney, Warner e a indústria cinematográfica fizeram uma pesada campanha de lobby encabeçada no Congresso pelo Senador Trent Lott. O resultado foi a ampliação, em 1998, dos direitos autorais após a morte do autor de 50 para 70 anos, caso o direito fosse propriedade de uma pessoa e a ampliação de 75 para 95 anos caso o direito fosse propriedade de uma empresa. Com isso, além das obras das duas empresas, ganharam mais 20 anos de exploração comercial exclusiva romances como “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald e “Adeus às armas” de Ernest Hemingway (cujos direitos detidos pela Viacom venceriam em 2000 e 2004, respectivamente) e músicas como o “Concerto número 2 para violino” de Prokofiev e “Smokes Get in Your Eyes” de Kern e Harbach (cujos direitos, da Boosey & Hawks e da Universal, venceriam em 1999 e 2008 respectivamente).

COPYLEFT – Retomemos agora aos fundamentos da legislação sobre propriedade intelectual (nome genérico que abrange os direitos autorais, de patentes e de marcas). Como vimos, desde que a legislação foi primeiramente elaborada, ela sempre foi justificada pelo estímulo material que o criador receberia. Mas será que o estímulo material é o único e o melhor estímulo que pode-se dar para o desenvolvimento do saber, da cultura e da tecnologia? Será que antes do advento das leis de propriedade intelectual as pessoas não eram estimuladas a escrever livros e canções e a inventar dispositivos tecnológicos?
Antes que Thomas Jefferson atuasse no escritório de patentes, Benjamin Franklin que com ele e John Adams redigiria a Declaração de Independência, tinha uma ativa vida de criador, tendo se tornado conhecido em todo mundo por seus experimentos e invenções. Realizador da famosa experiência com a pipa que provava que os raios eram descargas elétricas e autor de invenções como o óculos bi-focal e o pára-raios, Benjamin Franklin sempre se recusou a patentear suas invenções. Em sua autobiografia podemos ver os motivos pelos quais se recusava a explorar comercialmente os inventos. Vale a pena citar um longo trecho:
“Tendo inventado, em 1742, um forno aberto para o melhor aquecimento de aposentos e ao mesmo tempo, economia de combustível, na medida que o ar fresco incorporado era aquecido na entrada, fiz um presente do modelo para o Sr. Robert Grace, um dos meus amigos mais antigos, que, tendo uma fornalha de ferro, considerou a disposição das placas desse fogão uma coisa muito útil, já que aumentava a sua procura. Para promover essa demanda, eu escrevi e publiquei um panfleto de título: ‘Um relato do novo forno da Pensilvânia; no qual sua construção e modo de operação são detalhadamente explicados; suas vantagens sobre qualquer outro método de aquecimento de aposentos são demonstradas; e todas as objeções que foram levantadas contra o seu uso são respondidas e esclarecidas, etc.’ O panfleto teve uma boa resposta. O Governador Thomas ficou tão satisfeito com a construção desse fogão, tal como está descrito, que me ofereceu uma patente para a venda exclusiva deles por um período de anos. Eu recusei, no entanto, baseado num princípio que sempre pesou para mim em tais situações: uma vez que tiramos grandes vantagens das invenções alheias, devemos ficar felizes de ter uma oportunidade de servir aos outros com quaisquer de nossas próprias invenções; e isso devemos fazer de forma gratuita e generosa."
O fato de que homens talentosos como Benjamin Franklin nunca se sentiram estimulados pela perspectiva de retorno material por suas descobertas sempre foi levado em conta no debate sobre os direitos de propriedade intelectual. O historiador Thomas Macauly, por exemplo, que defendia os direitos segundo os princípios clássicos era obrigado a fazer ressalvas quando mencionava a contribuição que os ricos davam para a criação de obras e inventos: “Os ricos e os nobres não são levados ao exercício intelectual pela necessidade. Eles podem ser movidos para a prática intelectual pelo desejo de se distinguirem ou pelo desejo de auxiliar a comunidade.” Mas será que a vaidade de produzir uma obra única ou a generosidade de produzir um bem para a comunidade são virtudes exclusivas dos ricos? Boa parte do desenvolvimento artístico parece dizer que não.
Pintores importantes como Rembrandt, Van Gogh e Gauguin morreram na pobreza e sem reconhecimento, assim como músicos como Mozart e Schubert e um escritor como Kafka, embora nunca tenha sido verdadeiramente pobre, não chegou a ser reconhecido em vida. Será que a falta de perspectiva de recompensa material em algum momento impediu que eles se dedicassem à música, à pintura ou à literatura? Será que não tinham outro tipo de motivação – a expectativa do reconhecimento póstumo, o simples amor pela sua arte?
A questão da propriedade intelectual, quando pensada fora da imagem tradicional da balança que opõe estímulo material ao criador e interesse social em usufruir a obra ou invenção, leva a muitas outras ordens de consideração.
Será que os artistas devem ser remunerados pela criação das obras? Poderiam eles contribuir para esse bem coletivo e anônimo que é a cultura humana sem ter usufruído e incorporado antes a rica e generosa contribuição dos outros artistas, contemporâneos e do passado? E se achamos que é preciso um estímulo material além da vaidade pessoal e da vontade de contribuir para o bem comum, não seria possível então desenvolver um sistema público de recompensa para os inventores, como sugere o economista Stephen Marglin?
Um sistema que premiasse as grandes idéias – por meio de concursos públicos, por exemplo –
mas que não limitasse o uso dessas idéias a um empreender individual?
Na verdade, questões como essas – se se deve ou não recompensar materialmente a criação e se a melhor forma de fazê-lo é através da exploração comercial privada – são questões às quais não cabem respostas teóricas.
São os movimentos sociais que estão buscando alternativas concretas à propriedade intelectual que deverão oferecer as respostas – e, de fato, já estão a fazer.
Desde que obras e patentes passaram a ser registradas, os direitos sobre elas passaram a ser violados. Uma parte dessa violação dos direitos é, sem dúvida, mero crime. No entanto, à parte a violação marginal e clandestina dos direitos de propriedade intelectual (que pode ser muito grande, até mesmo dominante), sempre houve um fênomeno diferente de desobediência civil das leis que instauravam esses direitos. A desobediência civil, como se sabe, é muito diferente do crime.
O crime é uma violação de lei clandestina, feita às escondidas e com o entendimento de que a lei que se viola é legítima. A desobediência civil, por sua vez, é uma violação pública das leis motivada por seu caráter ilegítimo. A desobediência civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que está sendo infringida seja justa.
Desde que os direitos de propriedade intelectual foram instaurados, houve uma resistência aberta à sua aplicação no setor privado e comunitário. A enorme dificuldade de fiscalização fez com que essa desobediência civil tivesse um caráter passivo, que não se engajava na contestação das leis de propriedade intelectual, mas simplesmente as ignorava. As pessoas sabiam que os direitos existiam e deviam ser respeitados e simplesmente passavam por cima deles porque achavam que eram absurdos. Evidentemente não estou me referindo à pirataria comercial que era, sem exagero, apenas crime. A indústria pirata reconhecia a legislação vigente e fugia dela de forma clandestina, sem contestá-la. Aliás, todo industrial pirata não podia aspirar a coisa maior do que transformar sua indústria pirata numa indústria legal e passar a utilizar assim os direitos autorais a seu favor.
Mas coisa muito diferente eram os usuários que reproduziam a obra para fins não comerciais – “para a sua instrução mútua e a melhoria das condições”, como dizia Jefferson. Quando aparelhos de reprodução se popularizaram (o mimeógrafo, a fita cassete, a copiadora e em seguida a reprodução digital por computador), as pessoas automaticamente começaram a reproduzir livros, canções, fotos e vídeos, para si e seus amigos, sem pagar os devidos direitos, assim como, antes, já encenavam peças nas escolas e nos bairros e cantavam e tocavam canções para os amigos e para a comunidade também sem pagar os direitos. Por mais que a campanha “cívica” promovida pela indústria e pelo governo lembrasse a todos a importância de “pagar os direitos”, as pessoas desconfiavam frequentemente de forma intuitiva, que aquele pagamento não fazia sentido, pois quem apenas usufria desse bem coletivo que é a cultura humana não podia estar roubando nada de ninguém. Como Benjamin Frankliln havia escrito na sua autobiografia, na produção da cultura (e do saber e da tecnologia), nada pode ser feito sem que se tenha antes aprendido com a imensa comunidade dos outros produtores contemporâneos e dos que nos precederam. E da mesma forma que usufruimos e aprendemos gratuitamente com todos eles – de maneira tão ampla que sequer podemos nomeá-los individualmente – devemos disponibilizar nossa contribuição para a formação das novas gerações.
Embora nem a indústria, nem o governo tenham conseguido coibir de forma eficiente o uso privado e comunitário das obras sem o pagamento dos direitos autorais correspondentes, eles fizeram o possível e o impossível para obstruir a difusão de tecnologias de reprodução doméstica. Foi assim, em 1964, quando a Phillips lançou o cassete de áudio e a indústria fonográfica, primeiro tentou impedir o lançamento do produto e depois fez lobby no Congresso para que fosse criado um imposto sobre os cassetes virgens para compensar as “perdas” da indústria resultantes das cópias que os usuários fariam de seus LPs para cassetes. O mesmo aconteceu em 1976 quando a Sony lançou o videocassete formato Betamax.
Universal Studio e a Walt Disney abriram um processo contra a Sony acusando-a de incitar a violação dos direitos autorais e, depois de uma batalha judicial que duraram oito anos, a Suprema Corte finalmente reconheceu que a pessoa que gravava o último capítulo da novela não praticava pirataria. Depois, em 1987, chegou ao mercado um novo dispositivo de reprodução: a fita de áudio digital, que permitia gravações digitais fiéis sem recurso à compressão de dados (como acontece com o CD). Embora, de início, não tenha tido boa aceitação no mercado e, posteriormente, tenha apenas conquistado o mercado dos profissionais de áudio, a fita de áudio digital fez com que a indústria fonográfica entrasse em desespero.
Em função de suas pressões foram propostas diversas leis e emendas no Congresso americano que buscavam limitar a capacidade de reprodução dos aparelhos e taxar as fitas virgens. Depois de muitas disputas, o presidente Bush (pai), ratificou, em 1992, no último dia do seu mandato, o “Ato sobre a gravação doméstica de áudio” que tinha sido aprovado antes, no Congresso, por voto oral (de forma que não se têm registros sobre quem votou a favor e quem votou contra). O Ato, entre outras medidas, obrigava todos os aparelhos de áudio digital a ter um dispositivo que impedia a cópia em série de uma fita (ou seja, depois de feita uma cópia, não se podia fazer outra cópia a partir dela) e instituía um imposto sobre os aparelhos (2% sobre o preço de venda) e sobre as fitas virgens (3% do preço de venda). O imposto, depois de recolhido, era distribuído da seguinte maneira: 57% para as empresas (gravadoras e editoras musicais) e apenas 43% para os autores.
Seria este o tipo de incentivo ao autor que norteara o pensamento de Thomas Jefferson e dos fundadores da república americana quando conceberam as leis e instituições que regiam os direitos autorais?
O interesse crescente das grandes empresas na manutenção e ampliação dos direitos autorais se deve à forma específica como eles foram estabelecidos. Quando a propriedade intelectual foi concebida no final do século XVIII, sua finalidade era conceder ao autor um monopólio sobre a exploração comercial da obra, de forma que quem quisesse ler o livro que tinha escrito ou escutar a música que tinha composto, teria que pagar a ele.
Ele poderia exigir esse pagamento porque tinha o direito exclusivo de comercializar a obra, sem concorrência. Mas é óbvio que os autores não podiam fazer isso. A não ser que o autor de um livro se tornasse também editor, ele não poderia diretamente explorar a obra.
Teria que recorrer a um editor, a um capitalista, que iria explorar a obra por ele e tirar parte dos rendimentos para si própria, como compensação pelo investimento. Dessa forma, o autor cedia ao capitalista o direito de exploração exclusiva, sem concorrência, que tinha recebido do estado e dividia com ele os dividendos da criação. Mas, nessa relação, o elo fraco era o autor.
A distribuição de livros, discos e outros produtos sempre foi relativamente cara e havia muitos autores para poucas empresas interessadas em lançá-los. Isso fez com que as empresas tivessem um poder muito grande de determinar as condições dos contratos e conseguissem assim uma grande participação nos dividendos advindos da exploração comercial da obra. Era evidente que se o objetivo era estimular o autor e não beneficiar as grandes empresas, não havia porque o monopólio de exploração comercial ser cedido à empresa.
A melhor forma de beneficiar o autor teria sido ele manter para si o monopólio de exploração e ceder para diferentes empresas concorrentes o direito não exclusivo de publicação da obra.
Assim, com a concorrência entre as empresas, a obra seria barateada e melhor difundida e os dividendos se concentrariam com os autores que poderiam disputar licenças de exploração mais vantajosas. Com o monopólio de exploração comercial oferecido pelos direitos autorais sendo cedido integralmente para as empresas, não eram mais os autores que se beneficiavam primariamente, mas as grandes empresas da indústria cultural.
À medida que o poder da indústria cultural crescia, também cresciam as campanhas contra as violações dos direitos autorais. Essa pressão fez de certa forma, com que aquela desobediência civil passiva que aparecia quando as pessoas simplesmente ignoravam as leis, se tornasse mais consciente e, assim, movimentos de oposição declarada aos direitos autorais começassem a surgir. Enquanto pequenos grupos de hackers radicais começaram campanhas de violação deliberada dos direitos autorais, distribuindo música, vídeos, textos e programas de graça na internet sob o lema “a informação quer ser livre”. Grandes movimentos espontâneos menos conscientes e menos radicais tomavam conta de um público mais amplo. Entre esses movimentos, o de maior impacto, sem dúvida, foi o da formação da comunidade Napster.
O Napster era um programa “ponto a ponto” desenvolvido em 1999 pelo estudante Shawn Fanning que buscava superar a dificuldade de encontrar música em formato MP3 na internet. Até então, as músicas em formato MP3 eram disponibilizadas principalmente por meio de servidores FTP que, em geral, ficavam no ar apenas até uma grande gravadora encontrar o servidor e enviar uma mensagem ameaçando deflagrar um processo judicial. Para superar essa dificuldade, Fanning projetou um sistema ponto a ponto, em que usuários poderiam acessar arquivos em pastas compartilhadas em computadores de outros usuários através de links recolhidos por um servidor. Assim, suprimia-se a mediação dos servidores que armazenavam os arquivos. Os arquivos de música ficavam no computador de cada usuário e o servidor do Napster apenas disponibilizava os links de acesso a eles. O Napster trazia uma concepção inteligente que descentralizava o armazenamento dos arquivos. Com isso, criava uma situação legal ambígua. Não se tratava mais de um grande servidor distribuindo música, mas de uma rede de usuários trocando generosamente arquivos de música entre si. De certa forma, nada distinguia a troca de arquivos na rede Napster do hábito que as pessoas sempre tiveram de gravar fitas cassetes para os amigos. A diferença era que isso era feito numa rede de cinco milhões de usuários – e foi com base nessa grande dimensão que a RIAA, a associação das gravadoras americanas, sustentou um processo contra o Napster.
Um dos fatos mais relevantes do fenômeno Napster foi a constituição da comunidade Napster. Na ausência de um servidor que armazenasse os arquivos, o funcionamento da rede Napster exigia uma comunidade de usuários que compartilhasse suas músicas de maneira generosa. Se todos estivessem na rede apenas para baixar músicas e se recusassem a disponibilizar os seus próprios arquivos, a rede fracassaria. Mas o notável é que, a despeito de não ganharem nada e, pelo contrário, consumirem uma fatia às vezes considerável da sua banda de acesso, milhões de pessoas disponibilizaram músicas para outras pessoas que não conheciam, formando uma verdadeira comunidade virtual.
O fenômeno Napster deflagrou grandes discussões públicas sobre os direitos autorais entre 1999 e 2001, quando o Napster perdeu o processo na justiça. Por um lado, essa discussão evidenciou o caráter de desobediência civil que envolvia a utilização do programa. Embora o estatuto legal do Napster estivesse em julgamento, na grande imprensa e na opinião pública formada por ela, a mensagem uníssona era a das grandes gravadoras e dos grandes artistas que condenavam o Napster e acusavam-no de roubo, pirataria e de tirar o sustento de milhares de artistas esforçados. Apesar dessa massiva campanha de propaganda dos órgãos de imprensa (muitos dos quais ligados a grupos empresariais que também controlam grandes gravadoras), as pessoas não paravam de aderir à rede Napster numa demonstração aberta de que não consideravam legítima uma lei que impedia a livre troca dos bens culturais.
A discussão sobre o Napster, por outro lado, gerou um debate sobre a remuneração dos artistas e sobre as dificuldades de se compatibilizar a livre troca de informações com o sustento de uma classe de criadores profissionais remunerados. Não apenas as grandes gravadoras se opuseram ao Napster, mas uma série de artistas estabelecidos, do Metallica a Lou Reed, argumentou que a livre troca de música sem o pagamento dos direitos autorais retirava sua fonte de sustento. E embora esse debate tenha sido muito desequilibrado – porque sempre estava ausente um verdadeiro opositor dos direitos autorais – ele teve o mérito de pôr em evidência o objetivo primário da instituição dos direitos de autor.
Enquanto em alguns fóruns alternativos a possibilidade de um mundo sem direitos autorais era discutida um tanto teoricamente, um movimento iniciado por programadores começava a mostrar a viabilidade efetiva desse projeto. Não se tratava de pensar como poderia ser uma sociedade sem direitos autorais, mas de começar a pô-la em prática.
Embora muitas histórias possam ser contatadas sobre a origem desse movimento, podemos dizer que uma das suas principais manifestações teve origem no início dos anos 80 quando o programador Richard Stallman, do laboratório de inteligência artificial do MIT, abandonou seu emprego por se sentir constrangido pelas restrições de direitos autorais que impediam-no de aperfeiçoar programas comprados de empresas. Stallman sentia que as licenças de direitos autorais que negavam acesso ao código fonte dos programas (para impedir cópias ilegais) restringiam liberdades que os programadores haviam usufruído antes do mundo da informática ser dominado pelas grandes corporações – a liberdade de executar os programas sem restrições, a liberdade de conhecer e modificar os programas e a liberdade de redistribuir esses programas na forma original ou modificada entre os amigos e a comunidade. Por esse motivo, Stallman resolveu iniciar um movimento que produzisse programas livres, programas que resguardassem aquelas liberdades que o mundo dos programadores conhecia antes das restrições empresariais. Foi com essas idéias que Stallman começou a conceber o sistema operacional GNU que depois de ter o kernel desenvolvido por Linus Torvalds ficou conhecido como Linux.
O significado do desenvolvimento e principalmente da difusão do sistema operacional GNU/ Linux não é apenas o de romper o monopólio do sistema Windows, da Microsoft, mas, principalmente, de fazê-lo por meio de um empreendimento em grande medida coletivo e voluntário. Tirando alguns poucos funcionários que recebiam salários relativamente baixos da fundação de Stallman (a Fundação para o Software Livre), a maioria dos desenvolvedores do GNU/Linux eram programadores ligados a empresas e universidades que davam sua contribuição voluntariamente sem esperar qualquer outro tipo de retorno que não o reconhecimento público por um trabalho bem feito. Como Benjamin Franklin, esses programadores, entre os quais se encontravam alguns dos melhores em sua área, doava seu trabalho de forma “gratuita e generosa” esperando contribuir para “o bem comum” e “a melhoria das condições”. E apenas com esse trabalho voluntário e generoso (que nos últimos anos passou a ser bem explorado por grandes empresas) conseguiu-se montar uma comunidade estimada hoje em mais de 15 milhões de usuários.
O sucesso da difusão desse sistema operacional e de centenas de outros programas livres deveu-se ao fato de que esses programas garantiam a permanência de suas características “livres”. Quando Stallman iniciou o movimento pelo sofware livre, ele concebeu um tipo de licença de direitos autorais que assegurava a manutenção das liberdades em versões reproduzidas e melhoradas dos programas. A esse tipo de licença, Stallman deu o nome de “copyleft” (esquerdo autoral), num trocadilho com “copyright” (direito autoral). Ao invés de simplesmente abrir mão dos direitos autorais, o que permitiria que empresas se apropriassem de um programa livre, modificando-o e redistribuindo-o de forma não livre, Stallman pensou num mecanismo de constrangimento que assegurasse a manutenção da liberdade que o programador havia dado ao programa. O mecanismo pensado era reafirmar os direitos autorais abrindo mão da exclusividade de distribuição e alteração desde que o uso subsequente não restringisse aquelas liberdades. Em outras palavras, a pessoa que recebia um programa livre, recebia esse programa com a condição de que se o copiasse ou o aprimorasse, mantivesse as características livres que tinha recebido: o direito de rodar livremente, de modificar livremente e de copiar livremente. Com isso, os programas livres, frutos de esforços coletivos voluntários, ganhavam uma licença que garantia que mesmo que as empresas quisessem usá-los e distribuí-los, o fizessem de forma a manter suas liberdades iniciais.
O sucesso do sistema operacional GNU/Linux e do movimento do software livre trouxe um exemplo concreto da possibilidade de se constituir um sistema de criação onde a remuneração não fosse uma forma principal de estímulo e onde o interesse coletivo de usufruir com liberdade a cultura humana fosse mais importante do que a exploração comercial das idéias. Claro que a objeção de que os autores ficariam desprovidos de sustento e teriam que sujar as mãos com trabalhos não puramente criativos permaneceu. Mas o exemplo de Richard Stallman que trocou o papel de programador que cedo ou tarde seria forçado a submeter-se às empresas pelo papel de conferencista e assessor técnico independente ou ainda, o exemplo de George Gershwin, que antes de garantir o sustento de sua família por três gerações, ganhou a vida executando, como pianista e regente, suas próprias composições, mostra que uma vida sem direitos autorais é possível.
Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre circulação da cultura e do saber ampliou-se muito além do universo dos programadores. O conceito de copyleft é aplicado na produção literária, científica, artística e jornalística. Há ainda muito trabalho de divulgação e esclarecimento a ser feito e é preciso que discutamos politicamente os prós e os contras dos diferentes tipos de licença. Precisamos discutir se queremos conciliar a exploração comercial com a utilização não comercial livre ou se devemos simplesmente nos livrar dos mecanismos de difusão comercial de uma vez por todas; precisamos também discutir questões relativas à autoria e à integridade da obra, principalmente numa época em que o sampleamento e a colagem constituem formas de manifestação artística importantes; temos, finalmente, que discutir as inúmeras peculiaridades de cada tipo de produção adequando a licença ao que estamos fazendo (a ênfase na possibilidade de modificação de um programa de computador tem pouco cabimento quando aplicado à produção científica, etc.). Esse trabalho não é o trabalho de imaginar um mundo possível, mas de passar a construí-lo, aqui e agora. (9).


Notas:

1- “http://www.midiaindependente.org
2- Direitos de propriedade intelectual é um termo genérico para designar os direitos autorais, de patentes e de marcas. Neste artigo, falo um pouco dos direitos sobre patentes, mas, sobretudo, dos direitos autorais. Para a questão das marcas veja Naomi Klein, Sem Logo (Rio de Janeiro, Record, 2002).
3- Carta de Thomas Jefferson para Isaac McPherson de 13 de agosto de 1813 (The Writings of Thomas Jefferson. Washington, Thomas Jefferson Memorial Association, 1905, vol. 13, pp. 333-335). Essa passagem é muito citada como argumento contrário à propriedade intelectual, mas a intenção de Jefferson é apenas mostrar que a propriedade intelectual não é natural – o que não impede (e ele é um defensor disso) que ela seja instituída pela sociedade.
4- Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição Americana, art. I, § 8, cl. 8.
5- Thomas Babington Macaulay, “A Speech Delivered in the House of Commons on the 5th of February 1841” In: The Miscellaneous Writtings and Speeches of Lord Macaulay. Londres, Longmans, Green, Reader & Dyer, 1880, vol. IV.
6- Apesar disso, houve várias tentativas de introduzir o direito natural no tratamento da propriedade intelectual. Se a doutrina do direito natural vingasse, o direito de exploração comercial exclusiva perderia o caráter de concessão temporária justificada pelo estímulo à criação e se transformaria num direito permanente e hereditário. Isso levaria num curto prazo à completa mercantilização de todos os bens culturais. Felizmente isso não foi adotado em nenhum lugar. Na França, depois da revolução, a constituição de 1791 consagrou o direito “natural” à propriedade intelectual, mas a regulamentação desse direito sempre restringiu o monopólio a um período de exploração determinado.
7 - Evidência de que adequação à Convenção de Berne era apenas um pretexto é dada pelo fato de que apesar do período da vida do autor mais 50 anos ter sido adotado nos EUA em 1976, o país não aderiu à convenção até 1989 porque não abriu mão de outros ítens “menores” como a exigência de registro. Para todo esse levantamento, veja Tyler T. Ochoa “Patent and Copyright Term Extension and the Constitution: a Historical Perspective” Copyright Society of the USA (março de 2002): 19-125.
8- A União Européia havia estendido o prazo de validade dos direitos autorais para a duração da vida do autor mais 70 anos.
9- Copyleft Pablo Ortellado.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Jabor, ventríloquo de suas próprias tripas

Arnaldo Jabor é um animal adestrado, com os olhos marcados de rímel, boca pintada por um leve batom cor de pele, que fala durante alguns segundos no Jornal da Globo, produz comentários radiofônicos desvairados e escreve sobre absolutamente tudo em artigos de, no máximo, sete parágrafos.
Ele convenceu-se que, por estar ali no olimpo das nulidades, tem um mandato para pronunciar-se em nome do “povo”. Na quinta-feira, 1 de Janeiro de 2009, escreveu um de seus textos exemplares e deu-lhe o nome de “Lula é difu”. Eivado de preconceito de classe, é um texto deprimente. E revoltante.
Ele inicia suas mal traçadas linhas desvencilhando-se da maioria do povo: “O presidente de vocês - daqueles que o elegeram, daqueles que compartilham a sujeira com ele, daqueles que o acobertam na mídia, daqueles que batem palmas, que se ajoelham, que se vergam em busca de recursos e desinformação, daqueles que lhe dão 70% de aprovação, chegou ao seu nível moral mais baixo, abaixo até do ponto de ebulição do álcool!”
"Vocês" somos nós, o povo, a ralé. Ele não faz parte dessa malta ignóbil. Ele compõe um outro grupo: as elites bárbaras que destruiram o país, que entregaram nossas riquezas, que destruiram o meio ambiente, que limitaram as liberdades políticas, que produziram o descalabro da desigualdade social e da violência.
O comentarista segue em sua sanha de tucano desencantado com a popularidade do operário presidente: “Nada está abaixo do Lula. O Lula do “sifu”, do “porra”, do “cacete”, “sabe”, se colocou em uma posição inferior, não como presidente da República, mas como gente mesmo. Se o álcool não lhe trava a língua nem o faz escolher palavras do seu enorme minidicionário, o que sabemos que o álcool não faz com ninguém, ainda assim existem os assessores, “aspones”, e toda a sorte de lacaios pagos a peso de ouro para vigiar e reparar o rei nudista, descuidado, impregnado de falsa santidade, que se acha um profeta sábio a dar lições de moral aprendidas no PCC a presidentes eleitos, como Barack Obama. Lula tem carreira, tem trajetória, tem currículo e folha corrida de safadezas verbais e não-verbais. A linguagem chula é a sua primeira natureza. Lula, o pele vermelha e calórica, é isso há muitos anos.”
A incontinência verbal (verborréia) de Jabor associa-se de maneira linear à sua vulgaridade intelectual, desmedida, que se expressa em rotundas bobagens cafonas como “sexo é uma selva de epiléticos” - que graciosamente Rita Lee musicou com uma melodia melosa e auto-plagiada fazendo de Jabor um "letrista", o que está longe de fazê-lo um letrado.
Sabe-se que Jabor é um homem de direita, embora no Brasil os direitistas finjam ataque cardíaco quando são revelados como verdadeiramente são. É de Jabor, por exemplo, a opinião de que o governo militar brasileiro deixou um legado de "bons" exemplos. Segundo ele, a "complexidade lenta da democracia está a nos trazer saudades do simplismo velho de guerra". Velha de guerra é a tortura praticada pela ditadura que lhe produz saudade, sr Jabor, a mesma que tirou a vida do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado covardemente na cadeia onde encontrava-se preso por "crime de opinião" (ou seja, por divergir da ditadura) e que perseguiu milhares de brasileiros (dentre os quais o atual presidente do país), enquanto o "cineasta" desfilava nos gabinetes públicos angariando e obtendo patrocínio oficial para suas películas esquecíveis.
Jabor não é apenas um direitista sem caráter; é um fracassado que ataca Lula porque vê nele um sucesso “imerecido”; pobres e trabalhadores foram feitos para sofrer e trabalhar. Governar é outra história. Afinal, um homem do povo, com uma linguagem inculta, ter a popularidade que Lula têm, ou a aprovação internacional que faz do presidente do Brasil uma das vozes mais ouvidas do mundo... Ah, isso tudo deve cansar a beleza de Jabor, o Bozo do Jornal da Globo, que com gestos delicados e ênfase de botequim verbaliza opiniões emprestadas de livros de auto-ajuda ou mesmo coletadas em pesquisas escolares encontradas nos mecanismos de busca da internet.
Cineasta apadrinhado dos governos militares, fracassado em sua profissão de origem, Jabor tem inveja e a inveja o cega. É o retrato de uma sub intelectualidade de direita que não encontra mais lugar no mundo, mas que permanece na mídia, esse anti-mundo que quer ser mundo transferindo sua opinião e preconceitos para o público, contaminando-nos com suas opiniões manufaturadas e de segunda-mão.
Não fosse a idiotice galopante evidente, o ódio de classe e o despeito ululante já desqualificariam Jabor por frases como a seguinte: “Pior do que imoral Lula é ilegal. Lula é um vício de origem. Os que dele se acercam devem saber disso. Se sabem, são viciadores também.”
Jabor deve entender bem de vícios e viciados. Viciou-se, ele próprio, no dinheiro fácil que ganha para ser o porta-voz da direita brasileira, lugar que ocupou quando Paulo Francis, outro dandi direitista, morreu em Nova Iorque - porque morrer no Brasil é muito tedioso.
O Bozo da Rede Globo - é incrível a semelhança com o conhecido palhaço - fala para sua tribo: as viúvas da ditadura, do governo entreguista do PSDB; a direita do ex-PFL, os que acham que todo esquerdista é terrorista e que todo operário é ignorante; os que querem acabar "com a raça" do PT. Imagine um partido inteiro de operários, de trabalhadores? Isso deve dar alergia em Jabor. É por isso que insiste em dizer que Lula está deixando o povo brasileiro com a sua cara, “a sua fuça, a sua carantonha vulgar e baixa”.
O preconceito não se disfarça, não se quer esconder, ele quer se escancarar, sair do armário, mostra-se nu: “A nossa tão propalada macunaimidade era regional, pontual. Com Lula ela virou instituição nacional permanente. Não é para isso que trabalha incansavelmente a Saúde/Educação do imoral Temporão e seu pênis pedagógico?”
Aqui, o anti-fálico fala do uso de pênis de borracha para ensinar jovens estudantes a utilizar a camisinha corretamente, com o intuito de prevenir a gravidez na adolescência, uma verdadeira epidemia nacional que, para Jabor, não existe ou se existe é “moral”. Jabor não gosta de pênis de borracha e atribui sua existência a Lula e a Temporão.
“O povo pode parecer com o Lula, mas ainda não é o Lula”, comemora Jabor. Eu diria que infelizmente o povo ainda não é Lula, mas será, porque caminha para ser protagonista, como Lula se tornou, saído da pobreza, da miséria, da vicissitude que Jabor nunca conheceu.
O povo, como Lula, ainda pode lavar a cara todas as manhãs, não para tirar “a sujeira”, como sugere mister Bozo, vendilhão de opinião, que babava o ovo de FHC e agora faz todas as críticas do mundo ao governo e ao Estado, como se o Brasil tivesse sido inaugurado por Lula e pelo governo do PT e todas as mazelas não existissem antes de 2002.
Sim, o povo lava a cara ao despertar de um novo país, que mesmo diante de uma crise internacional que joga a economia de gigantes no chão, sobrevive apontando para um crescimento econômico impensável em tempos amarelos.
Jabor na TV é só um reflexo de sua própria laia, seguindo a rotina irresponsável de agendar o governo, discriminar o movimento social (trata o MST como “marginal” e “bandido” e as guerrilhas de esquerda como “terroristas”) e vender a imagem de um país ingovernável, onde tudo de ruim é atribuído ao governo, a Lula, enfim, a “esses pobres que tomaram de assalto o país”.
Jabor é o “serial killer” do pensamento, com sua vulgaridade de orelha de livro e filosofia aprendida em livros como “A revolução dos campeões”.
É o personagem central de um tipo de jornalismo feito por leigos ignorantes, personagem central dessa quadra de desonra inaugurada na vênus platinada, núcleo central da baixeza da vida nacional e que quer ditar a política do país.
Jabor e seus lacaios pensam as instituições assim: o Parlamento, a Justiça, a Democracia, a Soberania Nacional, a Imprensa só prestam se pensarem exatamente como eles pensam. A marca autoritária é desse tamanho e contamina a inteligência nacional, comprometendo o seu futuro.
O comentarista fala em “honestidade” como um ladrão que é pego em flagrante. Afinal, é honesto não ler os números? É honesto esconder que a quantidade de brasileiros com ensino superior dobrou no governo Lula? É honesto esconder que a inclusão digital elevou em 200% o número de brasileiros com acesso á internet? É honesto menosprezar programas sociais abrangentes, como o Bolsa Família ou os avanços na área de saúde, como o controle da AIDs e o avanço das pesquisas com célula tronco? É honesto empanar os avanços reais do país nos últimos anos?
A honestidade de Jabor é querer transformar sua opinião vulgar e desprezível em orientação moral e normativa de um país inteiro. Afinal, ele deve estar mais certo que a maioria, a quem quer indicar o caminho, liderar, transformar seus 30 segundos de diarréia mental noturna em dogma máximo da direita no Brasil.
Lá no olimpo do retrocesso onde produz suas crônicas, Jabor pensa que somos todos idiotas, que não pensamos, que precisamos dele para orientar-nos no mundo. Somos todos cegos diante da luz de Jabor, o infame.
Tomado pela vaidade, o comentarista não vê seu pequeno lugar no mundo. Ele não é exemplar a não ser por seus fracassos. Não indica o caminho a não ser para os que, como ele, têm miolo mole e fingem que estão ouvindo em sua palavra frouxa uma orientação divina. O ex-cineasta fala para o espelho e, felizmente, não há uma legião dos infames a segui-lo; sua opinião é, cada dia que passa a opinião da marginalia minoritária, solitária, saudosa dos tempos em que o país vivia de joelhos para o FMI e, seguindo as orientações do Tio Sam, caminhava para o precipício.
Jabor se acha “pop” e “extravagante”. Mas é só uma nulidade, um pequeno fascista, incapaz de fazer de si exemplo do que quer que seja, algo que não seja a recorrência da doentia boçalidade da burguesia e da ignorância das velhas elites conservadoras.
Engana-se quem pensa que essa adesão ideológica é gratuita. Jabor não é demente ou um louco corajoso. Não amarraria em si uma bomba para justiçar o mundo. Jabor é tucano por adesão bancária. Suzana Villas Boas, esposa de Jabor, presta serviços ao governador e candidatíssimo José Serra (leia em http://quem.globo.com/edic/100/karen.htm) e, recentemente, realizou uma festa de pré-lançamento do tucano à sucessão de Lula. Até a revista "Veja" estranhou os festejos fora de hora, decrevendo o evento assim: "Quase 300 pessoas se reuniram na casa do cineasta Arnaldo Jabor e da produtora Suzana Villas Boas para uma festança: a comemoração de três meses – isso mesmo: três meses – do programa de televisão produzido por ela de um canal pago. No meio de tantos convidados que comeram, beberam e se esbaldaram na pista de dança até as 8 horas da manhã, um chamou a atenção: o candidato a presidente José Serra. "Ele foi porque é muito nosso amigo e é nosso vizinho de frente", diz Suzana, que, por coincidência, trabalha na campanha de Serra. "Até pretendo fazer uma festa para ele, mas esta não foi", garante a anfitriã. Que pareceu, pareceu."
Serra é, para Jabor, o sabor do jabá de volta ao manjar do Alto de Pinheiros, bairro nobre paulistano onde se edifica a mansão jaboriana.
A festa inusitada realizada pelos globais e pela família dos produtores da campanha de Serra rendeu no site Observatório da Imprensa o seguinte comentário do jornalista Mário Augusto Jakobiskind: "que moral tem uma empresa jornalística como a Globo, que diariamente trabalha a notícia, de forma sofisticada ou não, sempre voltada para a defesa de um ideário que basicamente defende determinados interesses econômicos e políticos que favorecem a própria organização midiática? E esse respaldo se reflete também no apoio que presta a determinados políticos, sobretudo quando ocupam cargos executivos".
Posando de vestal na TV, na vida a parcialidade de Jabor é evidente. Quatro anos depois de criticar duramente o governo do presidente Lula pela compra do Airbus presidencial - que substituiu um avião que passava mais tempo em manutenção do que em uso - Jabor se esquivou de comentar a decisão da governadora do Rio Grande do Sul, a tucana Yeda Crusius, de também adquirir um jato para vôos internacionais.
Lula escreveu seu nome na história como um homem do povo que, por seus próprios méritos e pelo reconhecimento do papel do coletivo, colocou o país de pé e, definitivamente, na rota do desenvolvimento, distribuindo renda e incluindo socialmente milhões de brasileiros. Antes, dirigiu a construção do maior partido de esquerda do mundo ocidental, de uma das maiores centrais sindicais do mundo e fez de sua existência um exemplo para milhões de trabalhadores em todo o mundo. "Sim, nós podemos" não é o slogan de Obama. É a marca da existência do ex-metalúrgico que se tornou o presidente de maior aprovação popular de nossa história.
Jabor será lembrado talvez como o Bozo da Rede Globo, o bobo da corte, o que fala não o que lhe vêm a cabeça, sem medidas, como quer parecer, mas mimetiza o que a ideologia de seu meio, de sua classe, formula nos corredores escuros da periferia do poder, onde exalam seu milenar odor de enxofre. Sua fala sem regras se expressa não demonstra coragem, mas ignorância, uma vez que ignora que o Brasil, felizmente, é maior, mais complexo e mais importante que as instalações da emissora de Jacarepaguá que lhe empresta a voz.
O que ficará de Jabor é a afetação e seus textos precários e sem importância. Jabor é uma anedota viva, um sub-cineasta que faz de sua existência uma comédia ruim. Ao contrário do que pensa, Jabor não é o Lacerda do governo Lula. Aliás, sequer é jornalista.
É só o ventríloquo de suas próprias tripas.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Na cabeça de Noam Chomsky

O pensador estadunidense de esquerda, famoso por suas críticas ao capitalismo e pela postura radical contra a mídia de massas e a fabricação da opinião pública levada a cabo por ela, também é um cientista que revolucionou o estudo da linguagem ao aplicar fórmulas matemáticas à compreensão dos processos de formação dos sistemas linguísticos.

Chomsky: trajetória e idéias

Quando o naturalista inglês Charles Darwin observou os seres vivos e entre eles percebeu nexos e continuidades, combi-nando as idéias de evolução e de seleção natural, o mundo nunca mais foi o mesmo, porque nossa compreensão acerca da vida mudou. Do lingüista e pensador estadunidense Avram Noam Chomsky se pode dizer o mesmo. Autor de mais de 70 livros traduzidos para mais de dez línguas, Chomsky também revolucionou sua área científica, a exemplo de Darwin.
Chomsky mudou o objeto de estudo da lingüística. Como tinha acontecido um século antes no domínio da natureza bruta, também na ciência da linguagem pouca gente tinha ousado alguma teoria unificadora. Chomsky o fez.
Lingüística é o estudo da linguagem, da gramática das diferentes línguas e da história desses idiomas. Quando Chomsky apareceu no cenário intelectual, esse ramo da ciência tinha vivido poucos avanços significativos. Para falar a verdade, dois. O primeiro foi a criação da tradição clássica, originada no mundo grego, que perdurou até o final do século 19. O segundo salto foi o estruturalismo, criado pelo suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913).
Na visão clássica, estudava-se uma língua só por meio dos textos escritos. Os lingüistas rastreavam registros escritos, desde as línguas antigas (latim, grego, aramaico) até alcançar o presente. Esse tipo de abordagem exigia estudiosos que dominassem várias línguas, fazendo descrições de cada caso. Havia pouca capacidade de generalização, ou seja, de transpor o conhecimento acumulado sobre uma língua para outra língua. Era uma abordagem enciclopédica, que considerava os registros escritos como o ponto alto de um idioma.
No começo do século 20, era essa visão normativa, com separação clara do que era certo e o que era errado, que dominava o estudo da língua. Quer dizer: o que importava não era saber como funcionava a linguagem, e sim estabelecer e perpetuar as formas tidas como corretas, socialmente prestigiadas. O exemplo brasileiro mais saliente dessa visão é o de Ruy Barbosa, o jurista e político cujos textos, até a metade do século passado, foram tidos como um exemplo de português culto. Essa visão também influenciava o ensino. Na escola, estudava-se a origem da língua (seus pais ou avós provavelmente tiveram aulas de latim) e as mudanças que ocorreram na língua-mãe, até chegar à língua moderna culta. Parecia impossível ensinar o idioma de outro modo.
Saussure inovou, comparando o aprendizado de uma língua a um jogo de xadrez. Numa partida em curso, qualquer pessoa pode tomar o lugar de um dos jogadores, porque as regras do jogo são poucas e bem conhecidas. Por isso, não importa muito saber como o cavalo foi parar ali, ou como a torre foi perdida. O que vale é saber que, dada a situação das peças e conhecidas as regras, a partida pode seguir, agora manejada por alguém que chegou depois do início. Assim é o aprendizado da língua, disse ele: ninguém tem que obrigatoriamente saber a história da língua para falá-la e escrevê-la aqui e agora.
Foi um golpe certeiro. O estruturalismo, como ficou conhecida essa modalidade de estudo da língua, foi tão bem recebido que se expandiu para outras áreas (a antropologia, por exemplo). Para os adeptos dessa visão, estudar uma língua é realçar as estruturas que a compõem e descrevê-las, sem ligar para a história que a trouxe do mundo primitivo até o presente. Estava aberto o caminho para uma abordagem científica da linguagem, porque não se tratava mais de caçar o certo e o errado, mas de tomar a língua como um objeto. Com isso, caía por terra a suposta superioridade de uma língua sobre outra.
Tal mudança tinha motivações concretas. Uma delas era o contato cada vez mais freqüente com línguas não oriundas nem do latim nem do grego. Com sua postura etnocêntrica e escritocêntrica, um lingüista clássico, defrontado com uma língua indígena puramente oral, sem registro escrito, nada podia fazer. O idioma morreria com o último falante nativo. (Anos depois, Chomsky disse que com a perda de uma língua se perde uma pista, talvez irrecuperável, para a solução do mistério da linguagem humana.) Mas, se ele quisesse conhecer o modo de ser daquela cultura, seria preciso outra atitude: gravar as falas dos índios, anotá-las e depois descrevê-las no maior detalhe possível.
O estruturalismo permitia essa revolucionária abordagem: não há aquela visão normativa, de certo e errado, nem necessidade de recorrer à história para entender o presente. A ênfase recai sobre a base empírica, sobre os dados de linguagem verificáveis. Pela primeira vez, a língua ganha estatuto científico, com autonomia em relação à moral, à cultura, aos bons costumes.

Como se faz um lingüista

A formação acadêmica de Chomsky é curiosa. Filho de professor de hebraico, ele dispunha de um conhecimento familiar da matéria, manejando o inglês e o hebraico com intimidade. Avram Noam nasceu em 7 de dezembro de 1928, em Filadélfia, Pensilvânia. Seu pai era William (originalmente, Zev) Chomsky, judeu russo que emigrou para a América em 1913, para não ser obrigado a servir no Exército. Sua mãe se chamava Elsie Simonofsky. Os dois tinham profundas relações com a tradição judaica, e William logo se tornou especialista na gramática do hebraico.
Noam passou por experiência escolar marcante. Dos 2 aos 12 anos, freqüentou um colégio inspirado nas idéias de John Dewey (1859-1952), filósofo americano que pregava um ensino livre de avaliações formais, a favor da criatividade, com desafios à inteligência e nenhuma caretice. Nesse clima, Noam escreve seu primeiro artigo, para o jornal da escola, sobre a queda de Barcelona, foco de resistência dos anarquistas, durante a Guerra Civil espanhola. Tinha 10 anos.
Tão positiva foi essa experiência de aprendizado libertário, que a passagem para uma escola tradicional, na adolescência, foi um choque. Lá ele aprenderia os horrores da avaliação emburrecedora e da doutrinação ideológica, que ele passou a combater de corpo e alma. Anos depois, em carta a seu biógrafo, ele comentava a consciência que começou a desenvolver ao descobrir-se torcedor do time de futebol da escola. Por que eu estou torcendo por esse time? Eu não conheço essa gente, e eles não me conhecem. Então, por que eu torço? Bem, é o tipo da coisa que você é treinado para fazer. É uma coisa incutida em você. É uma coisa que leva ao ufanismo e à subordinação mental. Mas seu pensamento libertário o isolava. No dia em que seu país bombardeava Hiroshima e Nagasaki, Chomsky estava em férias numa colônia da escola. Ele disse que se sentiu horrorizado, enquanto seus colegas comemoravam.
Bom leitor desde a infância, Chomsky teve uma formação particular. Aos 13 começou a freqüentar Nova York, onde tinha parentes, entre eles um tio, dono de banca de revistas, que funcionava como centro cultural informal. Era um sujeito de formação fraca, mas inteligente. Levado por parentes, freqüentou círculos anarquistas, tudo imerso no mundo cultural dos imigrantes judeus recém-vindos da Europa, gente com ótima formação cultural, embora ali trabalhassem em ofícios manuais.
Isso explica, em parte, por que Chomsky nunca foi marxista, muito menos leninista: ele sabia que havia brutalidade também do lado soviético. Desenvolveu ainda um senso agudo de leitor: para ele, pensadores marxistas como o húngaro Georg Lukács (1885-1971) não lhe soavam profundos, mas confusos. E a clareza e a simplicidade lhe parecem marcas essenciais das grandes idéias. Daí sua admiração por Dwight MacDonald, o ficcionista inglês George Orwell (1903-1950), e Bertrand Russell (1872-1970). Aliás, um dos raros elementos decorativos presentes na sala de Chomsky no Massachusetts Institute of Technology (MIT), o prestigiado instituto americano onde ele hoje leciona, é um pôster de Russell, admirado como filósofo, aliado das classes populares e crítico do papel da elite na reprodução ideológica de seu poder.
Por essa altura, ele passou a apoiar o sionismo, o movimento religioso e político, originado no século 19, que pregava o restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico. Mas é preciso ver que na época, antes da fundação do Estado de Israel, em 1948, ser sionista era ser de esquerda. Os sionistas de então acreditavam que o novo país seria uma sociedade solidária, com matizes socialistas que se configuraram nos kibutzim, colônias de produção coletiva e cooperação entre os palestinos e os judeus. Alguns anos mais tarde, quando começou a namorar sua futura esposa, Carol Schatz, enfrentou uma escolha difícil: seguir a carreira acadêmica ou migrar para Israel? Mas a maior aproximação com Israel foram algumas semanas passadas em um kibutz, em 1953.
Anos depois, sua posição sobre Israel foi tomada como anti-sionista. Mas foi a palavra que mudou de sentido. A partir da ocupação de territórios palestinos e árabes por Israel, ser sionista passou a significar apoio à política expansionista e antiárabe do Estado de Israel.
Na universidade, caminhou entre a filosofia e a lingüística, sem nunca perder de vista o debate e a prática da esquerda libertária não-comunista. Aprendeu árabe. Em 1947, quando estava decidindo sua especialidade, encontrou Zellig Harris, lingüista e pensador judeu americano que foi para ele um parâmetro moral, político e científico. Harris, também sionista, era estruturalista, e Chomsky aprendeu muito com ele. O suficiente para superá-lo.

Descobertas renovadas

Sua entrada para o MIT ocorreu em 1955. Universidade tecnológica com pouca tradição em humanidades e, por isso mesmo, livre da burocracia e da ciumeira tradicionais nas ciências humanas, o instituto não se importou com o fato de Chomsky ter uma formação híbrida de matemática, psicologia, filosofia e lingüística. Ele vai trabalhar numa atividade de que discordava, o desenvolvimento de uma máquina de tradução, para decodificar comunicações cifradas, na Guerra Fria.
A pesquisa tinha patrocínio de nada menos que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica americanas, mais a Nasa, a agência espacial. Para um esquerdista, era uma saia justa ideológica, que ele desvestiu com elegância: ao publicar o hoje clássico Aspectos da Teoria da Sintaxe, em 1957, o primeiro produzido no MIT, ele cita seus financiadores e declara que é permitida a reprodução daquele trabalho para qualquer finalidade do governo dos Estados Unidos.
A relação de Chomsky com governos nunca foi tranqüila. Ele rejeita sistematicamente convites oficiais, mesmo vindos de governos de esquerda. Ao Brasil, ele veio este ano, quando o Fórum Social Mundial o convidou mas aí eram organizações não-governamentais.
No MIT, Chomsky desenvolveu uma crítica ao estruturalismo. Essa corrente concebia a linguagem como algo que se aprendia por imitação. Era uma teoria behaviorista, baseada na crença de que, em última instância, o ser humano não tem nada de inato, tudo é aprendido por adestramento. O maior formulador dessa teoria foi o psicólogo americano B.F. Skinner (1904-1990), famoso pela descrição de mecanismos de controle das ações humanas por estímulo e resposta.
Chomsky tem coceiras na alma quando ouve falar de adestramento, dada sua crença na criatividade humana. Em sua concepção, a linguagem é uma capacidade humana natural, inscrita no DNA. É a tese que defende em vários artigos e livros hoje clássicos, como Lingüística Cartesiana, em que toma o mote do racionalista francês René Descartes (1595-1650) sobre tal questão. Dizia Descartes: se uma criança for criada entre lobos, ela não desenvolverá a linguagem. Mas, se voltar ao convívio humano, tudo volta ao que deveria ser, e ela aprende a falar. Já um macaco, mesmo que seja criado apenas entre humanos, jamais desenvolverá a linguagem, que nele não é inata.
Pode parecer pouco, mas essa posição é revolucionária, ainda que recupere pensadores racionalistas e iluministas. Ao criticar Skinner, Chomsky estava não apenas discutindo lingüística, mas atacando a convergência entre o ponto de vista científico e o desejo de domínio das classes dominantes sobre as pessoas. Mais ainda, Chomsky estava mudando radicalmente a localização do objeto de estudo da lingüística: enquanto para os estruturalistas a língua era algo externo ao homem, para ele o foco era a capacidade inata da linguagem, porque ali, dentro de todos e de cada um, está um tesouro, que é preciso estudar. (Essa capacidade que faz você, leitor, entender esta frase que está lendo agora, frase que nunca tinha lido antes mas que faz sentido esta capacidade é o objeto da lingüística chomskyana.)
Chomsky também diverge do empirismo dos estruturalistas. Para eles, a tarefa do lingüista consiste em descrever as línguas tal como se apresentam, na fala das pessoas ou nos textos. Para Chomsky, esse caminho positivista é um beco sem saída, ou melhor, um caminho sem fim: cada época, cada região e mesmo cada indivíduo sempre modificam um pouco a língua, de maneira que o trabalho seria uma catalogação infinita. Começou a falar alto a parte matemática de sua formação.
Chomsky postulou que se pode descrever algebricamente as línguas ou melhor, a língua humana , a partir de esquemas abstratos e não de dados colhidos em cada situação. Saiu da visão indutiva e passou à dedução: em vez de procurar as particularidades de cada língua, ele cogitou que, sendo manifestações de uma condição inata, as línguas devem guardar características universais, marcas de sua origem comum no cérebro humano.
Para descrever o processo cerebral que dava origem às frases, Chomsky postulou a tese de que a linguagem humana ocorre em dois níveis: uma estrutura profunda, na qual o raciocínio ocorreria sem o uso de palavras (mais propriamente, essa estrutura corresponderia ao que hoje concebemos como um software), e uma estrutura superficial, que são as frases que dizemos, pensamos e escrevemos. Entre os dois níveis haveria um conjunto de transformações, que o lingüista deveria descrever.
Um exemplo clássico. Tome duas frases: João comprou o caderno e O caderno foi comprado por João. Para um estruturalista, que só trabalha com a língua manifestada, observável diretamente, elas são muito diferentes. Já para Chomsky as duas frases seriam, apesar das diferenças óbvias, muito próximas, porque dizem a mesma coisa, descrevem a mesma ação, mudando a ênfase a primeira começa a frase pelo agente da ação, enquanto a segunda inicia com o objeto (as formas ativa e passiva). Ou seja: na estrutura profunda, as duas frases seriam uma só. As transformações entre um estágio e outro é que seriam objeto do lingüista.
Vêm daí as nomenclaturas originais de sua teoria: ele queria descrever uma gramática (no sentido de conjunto de regras de funcionamento da língua) que fosse gerativa (capaz de gerar, no sentido matemático, todas as frases possíveis a partir de um conjunto limitado de regras e elementos) e transformacional (que descrevesse as regras de transformação entre as duas estruturas).

Militância política

A política sempre esteve presente na vida de Chomsky. Desde o jornal da escola, depois na vivência nas ruas da Nova York da Segunda Guerra, no debate sionista, na aproximação com grupos anarquistas. Sua atuação hoje é desdobramento da velha militância, marcada pelo anarquismo, pela perspectiva libertária, pelo racionalismo iluminista.
Na primeira contribuição relevante à prestigiosa revista The New York Review of Books, em 1967, ele escreveu um longo artigo, A Responsabilidade dos Intelectuais. Nele, Chomsky lembra que, 20 anos antes, lera um texto decisivo em sua formação, de Dwight MacDonald (1906-1982), jornalista de esquerda que formulava perguntas como: Até que ponto os britânicos e americanos somos responsáveis pelos aterrorizantes bombardeios sobre civis, executados como uma simples técnica por nossas democracias ocidentais culminando em Hiroshima e Nagasaki, certamente um dos mais indizíveis crimes da história?
Foi com essa inspiração que Chomsky construiu o que, para ele, era a tarefa central dos intelectuais: Os intelectuais têm condições de denunciar as mentiras dos governos e de analisar suas ações, suas causas e suas intenções escondidas. É responsabilidade dos intelectuais dizer a verdade e denunciar as mentiras. Era o ano de 1967, e os Estados Unidos estavam em guerra com o Vietnã.
Politicamente, Chomsky se define como anarquista. Mas ele tem uma visão própria do termo. Para ele, anarquismo é a convicção de que a obrigação de se explicar é sempre da autoridade, e que esta deve ser destituída caso não consiga fazê-lo. Trata-se de posição não ortodoxa, não partidária e certamente anticomunista, mas pela esquerda.
Para ele, capitalismo é um mercantilismo corporativo, controlado por empresas ajustadas com governos, que sempre intervêm a favor do capital, apesar da fantasia do livre mercado (inexistente, diz ele, nos Estados Unidos e em toda parte), e que exercem controle sobre a economia, a política, a sociedade e a cultura. Seu inimigo é o poder do capital e do Estado. Para ele, os indivíduos é que devem ser a medida das coisas.

Eremita solitário

A posição filosófica de Chomsky, em princípio, não tem relação com sua atividade científica, voltada para a busca do caráter universal da linguagem humana a partir de uma abordagem algébrica. Mesmo a semântica não importa. Sua famosa frase Colorless green ideas sleep furiously (Idéias incolores verdes dormem furiosamente, em português) representa a tese de que qualquer falante reconhece frases mesmo que sem sentido, o que seria uma prova da qualidade inata da linguagem. O Chomsky militante tem interesse no mundo social, ao passo que o cientista não quer saber dele diretamente. Só muito abstratamente, como ele costuma dizer, os dois universos se encontram. Um desses pontos de contato é o Iluminismo a procura de universais, sejam eles lingüísticos ou republicanos. Outro é a fé na razão, que pode ser a razão filosófica ou a razão do bom senso. Ou o cosmopolitismo, tanto na aceitação da validade de qualquer língua humana quando na compreensão do valor de cada indivíduo.
Seus esforços em decifrar a linguagem humana são, por outro lado, semelhantes aos que dispende na denúncia do que lhe parece errado. Em 1967, ele escreveu: A fraude e a distorção que cercam a invasão americana no Vietnã estão, agora, tão domesticadas que perderam seu poder de chocar. É portanto útil recordá-las, embora estejamos atingindo novos níveis de cinismo a toda hora e os evidentes motivos desse horror estejam sendo aceitos, com silenciosa cumplicidade, em nossos lares. Se trocarmos Vietnã por Iraque, temos aí o texto que Noam Chomsky pode estar escrevendo neste exato momento.
Conferenciando para centenas de jovens na Austrália, metendo o bedelho nas crises do Oriente Médio ou escrevendo um artigo de lingüística, aí está Avram Noam Chomsky, temperamento eremita, que preferiria ficar quieto em seu canto, mas vive militando pelo mundo, denunciando o poder e espalhando solidariedade.


Para saber mais


PRINCIPAIS TRABALHOS NA ÁREA DA LINGÜÍSTICA
Aspectos da Teoria da Sintaxe, Armênio Amado, Portugal, 1995.
O Conhecimento da Língua: Sua Natureza, Origem e Uso, Caminho, Portugal, 1994.
O Programa Minimalista, Caminho, Portugal, 1999.
ALGUNS TÍTULOS PUBLICADOS NO BRASIL DA ÁREA DA CRÍTICA SOCIAL E POLÍTICA
Novas e Velhas Ordens Mundiais, Scitta, São Paulo, 1996.
Segredos, Mentiras e Democracia, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1997.
O Que o Tio Sam Realmente Quer, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1999.
A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta, Editora da Universidade de Brasília, Brasília, 1997.
O Lucro ou as Pessoas? Neoliberalismo e Ordem Global, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2002.
Banhos de Sangue, Noam Chomsky e Edward Herman, Difel, São Paulo, 1976.
A Sociedade Global - Educação, Mercado e Democracia, Noam Chomsky e Heinz Dieterich, Editora da FURB, Blumenau, 1999.
Propaganda e Consciência Popular, Noam Chomsky e David Barsamian, EDUSC, São Paulo, 2003

SOBRE CHOMSKY

O Instinto da Linguagem: Como a Mente Cria a Linguagem, Steven Pinker, Martins Fontes, São Paulo, 2002.
Noam Chomsky: A Life of Dissent, Robert F. Barsky, MIT Press, Estados Unidos, 1997.

O texto final, publicado em Superinteressante, contou com a colaboração de Pedro Garcez.

Fabricando o consenso

Os Estados Unidos foram criados para ser a terra onde o pensamento poderia se expandir ao seu limite máximo. Porém, por um processo sofisticado que o senhor chama de engineering of consent [produção do consentimento], a América parece ter criado uma moldura que impede as pessoas de formular certos pensamentos. O senhor poderia nos explicar como funciona esse sistema de censura?

Cromsky- Em meados do século XIX, quando Alexis de Tocqueville viajou pelos Estados Unidos, já assinalava que nunca vira um país onde o nível de doutrinação fosse tão intenso, onde a subordinação ao pensamento oficial fosse tão extrema e onde o pensamento independente fosse tão raro. Henry David Thoreau escreveu, na mesma época, que não lia os jornais porque não significavam nada. Dizia que não havia sequer uma pessoa em mil que se dispusesse a questionar a doutrina oficial e que o nível de independência era muito baixo. O começo disso é, na verdade, muito anterior à Revolução americana - remonta às origens do impulso democrático moderno, à grande Revolução inglesa do século XVII. Ela assustou terrivelmente as elites, porque continha elementos de democracia radical: a população em geral estava ficando com a impressão de que podia cuidar de seus próprios assuntos e de que era capaz de pensar por sua própria conta. Isso precisava ser combatido e, em torno de 1660, a revolução foi derrotada. Trinta e cinco anos mais tarde, em 1695, a censura governamental foi abandonada, pela simples razão de que não era mais necessária. Àquela altura, o controle sobre o pensamento e a expressão estava nas mãos de grupos da elite que, podia-se ter certeza, praticariam autocensura. John Locke, um dos grandes defensores do liberalismo moderno, escreveu em 1695 que era necessário dizer às pessoas comuns - diaristas, tecelões, artesãos, padeiros, etc. - em que coisas deviam acreditar. Não se pode deixar que resolvam por si mesmas no que vão acreditar, porque acabam cometendo erros. Assim é a democracia. Essa tradição de controle do pensamento se ampliou ao longo da época moderna. Durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, a população era muito pacifista - as pessoas em geral são pacifistas, não vêem razão para sair assassinando e morrendo. Assim, precisavam ser levadas a uma histeria guerreira. Woodrow Wilson venceu as eleições de 1916 com uma plataforma de "paz sem vitória". E, é claro, interpretou imediatamente que se tratava de um mandato para obter a vitória sem paz. Seu problema era como obter o apoio da população para a guerra. Nesse momento, os Estados Unidos criaram sua primeira agência de propaganda governamental. Acredito que foi a primeira agência de propaganda estatal de todo o mundo. Seu objetivo era criar um sentimento guerreiro numa população que, de modo geral, não queria guerra. Os intelectuais, especialmente os liberais, aderiram entusiasmados à causa - e na verdade ficaram com o crédito. Isso mostra como a orientação [management] social pode ser conduzida pelos intelectuais, pelas pessoas que chamamos de "comissários" quando falamos de nossos inimigos, embora o fenômeno aqui seja essencialmente o mesmo. Edward Guernays, uma das figuras mais importantes da indústria de relações públicas, talvez sua figura mais importante, fazia parte desse comitê de
propaganda governamental e aprendeu bem suas lições. Foi ele que mais tarde criaria a expressão engineering of consent, afirmando que a produção do consentimento é a essência da democracia. A mesma idéia surgiu em meio à comunidade intelectual. Walter Lippmann, o decano dos jornalistas americanos, falou , em 1921, logo após a guerra, e à luz da experiência da guerra, do que chamava de manufacture of consent [fabricação do consentimento]*: a população em geral não entende o que é bom para ela, os únicos que entendem o que é bom para ela são os membros da elite, que, portanto, precisam fabricar o consentimento. A idéia que paira por trás disso, do século XVII aos nossos dias, é que, se o governo é capaz de controlar a população pela força, ele não se importa muito com o que ela venha a pensar, mas se não for capaz de controlá-la pela força, se a voz das pessoas puder se manifestar, é preciso certificar-se de que esta voz estará dizendo as coisas certas. Assim, quanto mais livre for uma sociedade, mais serão necessários a doutrinação e o controle do pensamento. Esta idéia, compreendida conscientemente, pode ser encontrada ao longo de toda a história americana. O fato de nosso sistema de doutrinação ser tão forte e poderoso se deve em grande parte ao fato de o país ser tão livre.



Como se dá isso, objetivamente?


Chomsky - Para dar um exemplo concreto, vamos comparar os Estados Unidos com o Japão, competidores no mercado mundial. Os dois países falam de livre-comércio, mas nenhum dos dois acredita nele - como, na verdade, ninguém jamais acreditou no livre comércio. Ambos contam com sistemas industriais que são coordenados por uma combinação entre o governo e as grandes empresas. Nos Estados Unidos, os únicos setores da economia que são competitivos no cenário internacional são aqueles que recebem subsídios do governo: a agricultura intensiva em capital é fortemente subsidiada pelo governo, e a indústria de alta tecnologia é, na verdade, um apêndice do governo, através do sistema militar, que fornece o mercado para seus produtos e força o público a subsidiar a pesquisa e desenvolvimento. Na indústria de alta tecnologia, os Estados Unidos e o Japão são competidores e obedecem a um planejamento muito semelhante, ou seja, o nexo empresarial do governo segue um planejamento muito semelhante. Eles decidem quais são as tecnologias emergentes, o que será vendável no futuro e dirigem a pesquisa para esses fins. Mas fazem-no de maneiras diferentes, que refletem por sua vez as diferenças que existem entre as duas sociedades. No Japão, o governo e as empresas se reúnem e decidem de que modo os gastos públicos serão dirigidos para a indústria no ano seguinte. Se ordenarem ao público que reduza o consumo em benefício dos investimentos, ele obedece. O Japão tem uma cultura submissa, baseada na obediência e na subordinação, e, na verdade, apresenta características bastante fascistas. Nos Estados Unidos, isto não é possível. Nenhum político pode vir a público e dizer: "Vocês precisam reduzir o seu nível de consumo, para que a IBM produza novos computadores e tenha lucros maiores, e talvez seu filho venha a ter um emprego dentro de vinte anos". O que se diz às pessoas, nos Estados Unidos, é: "Os russos estão chegando". Ou: "os líbios estão chegando". Ou ainda: "Granada vai nos invadir", e coisa assim. "E por isso precisamos ter um sistema militar monstruoso para nos defender da destruição". É claro que o Japão vence essa competição. O desenvolvimento indireto da tecnologia através dos militares implica um imenso desperdício. E por que os Estados Unidos precisam fazê-lo dessa maneira? Porque têm uma sociedade mais livre. As pessoas não concordariam em cortar voluntariamente seu consumo e em trabalhar mais para que a indústria possa ter lucros maiores. Assim, precisam ser forçadas a fazê-lo, o que se dá por meio da doutrinação. E isso requer a existência do sistema militar, da ameaça externa e assim por diante. O Japão pode fazê-lo de maneira direta: simplesmente produz para o mercado comercial, e as pessoas fazem o que lhes mandam.


Qual é o verdadeiro sentido, na América, de expressões como free choice [liberdade de escolha], free press [liberdade de imprensa] e free access to information [liberdade de acesso à informação]. Houve, por exemplo, alguma opção real entre Bush e Dukakis?


Chomsky - A liberdade de escolha existe na medida em que o governo não força ninguém a escolher. Por outro lado, todas as escolhas são restringidas por condições, impostas pela própria distribuição do poder. E sempre foi assim. O sistema constitucional americano não foi concebido para que houvesse participação da população. Era um sistema criado para os homens brancos que tivessem propriedades. E a premissa era de que aquela classe restrita tinha suficientes interesses em comum para lhes permitir administrar o país. Muita gente não se lembra, mas a Constituição americana continha ralmente um dispositivo afirmando que uma parte da humanidade só era 3/5 humana - no caso, os negros. Se algum país do Terceiro Mundo adotasse hoje a Constituição americana, diríamos que se trata de uma reversão ao nazismo, o que, de certa forma, é um sinal positivo, que indica que as coisas progrediram desde então. No sistema industrial moderno, o poder e os privilégios foram ficando cada vez mais concentrados à medida que se desenvolviam as empresas. E são elas que devem governar o país. A história política americana é , no fim das contas, a história de uma seleção entre vários setores da classe empresarial e proprietária. As últimas eleições são um bom exemplo. Faz anos que os Estados Unidos são, essencialmente, um Estado unipartidário. Há duas facções dos conservadores, duas facções da classe empresarial, e elas apresentam seus candidatos. E a população de fato tem a liberdade de escolher entre os dois representantes dos interesses da classe empresarial. Assim, todos compreendem que aquilo que os candidatos dizem não é para ser levado a sério. Os candidatos têm encarregados de fazer pesquisas. Esses pesquisadores determinam que tipo de declarações podem vir a ser populares, e então o candidato produz exatamente essas declarações. Desse modo, o candidato está na verdade respondendo ao que o instituto de pesquisa lhe diz ser capaz de aumentar seu número de votos. E todos aceitam isso. É a política. Ora, isso reflete um desprezo total e completo pela democracia. Significa que tudo o que um candidato diz não passa de uma técnica por meio da qual seus financiadores, um grupo da comunidade empresarial, pretendem assumir o controle do Estado. Nas eleições de 1980, as elites achavam que, para tornar competitivas as empresas americanas num mundo cada vez mais difícil, as margens da lucratividade precisavam ser aumentadas, a violência do Estado precisava crescer, o Estado tinha de se envolver mais fortemente na administração industrial e forçar o público a subsidiar a indústria de alta tecnologia. As poucas medidas de previdência social existentes deveriam ser cortadas. Foi o que aconteceu. O público só tinha uma escolha: entre duas maneiras de levar a efeito o consenso da elite, um consenso a que ele se opunha. Nas eleições de 1984, os republicanos eram o partido do crescimento keynesiano. Propunham despesas deficitárias e eram apoiados pelos segmentos do sistema industrial que queriam justamente isso - que o governo despejasse dinheiro na insdústria avançada, deixando parase preocupar com os efeitos mais tarde. Já os democratas eram o partido dos conservadores fiscais, apoiados pelos bancos e pelas empresas de investimento, e também pelos interesses imobiliários. Assim, o eleitor podia escolher entre o crescimento keynesiano acompanhado de uma retórica ultranacionalista - os republicanos - e o conservadorismo fiscal rabugento - os democratas. Elegeram os republicanos. Numa sociedade livre, não se pode impedir que as pessoas votem. Assim, o que se faz é assegurar que não haja nada em que elas possam votar. O análogo disso no sistema de informações é que não se pode evitar que as pessoas comprem o jornal que quiserem, e também não se pode proibir os jornais de publicarem o que quiserem; assim, é necessário asseguar-se de que os jornais vão publicar as coisas certas. E isso acontece automaticamente, devido à concentração do poder. Os meios de comunicação são grandes empresas. As três redes nacionais de televisão são grandes empresas, controladas por empresas ainda maiores, como a General Electric, a Westinghouse etc. Os grandes jornais são empresas ligadas a bancos e conglomerados financeiros. Nos Estados Unidos, os meios de comunicação são simplesmente empresas que vendem um produto para um mercado. O mercado são os anunciantes, que os sustentam. E o produto é a audiência.



Entrevista[fragmento] com o linguista e professor do MIT, Noam Chomsky [IN "America", 1996]