Escândalos envolvendo atletas eram fato raro quando o futebol era um esporte coletivo.
Dito de outro modo: quando valia mais o espírito de grupo e o único escudo no uniforme era do clube ou da seleção correspondente, o futebol gerava mais atletas com um nível de desempenho e compromisso que expressavam uma ética coletiva. Há, no panteão do futebol, ídolos que sempre defenderam um mesmo clube, identificados com a camisa e o escudo dessa equipe para sempre. Eram heróis individuais que expressavam o coletivo.
Hoje, o futebol é mercenário. Inútil para a glória coletiva. Serve ao enriquecimento fácil de jovens despreparados para a vida, de empresários ávidos por dinheiro profuso ou de cartolas inescrupulosos que não suam a camisa. Serve às marcas e aos cartolas, campeões de frustrações.
Esse futebol-empresa é cinza, triste e gera, à sua volta, quadrilhas que se ocultam em falsas paixões clubísticas, sejam de diretores de agremiações ou de bandos para-militares que se autodenominam "torcidas organizadas" - na verdade organizam a violência individual e a insanidade mental contra "o inimigo" das torcidas adversárias. Essas hordas nutridas pelo ódio ou pela ganância não sabem que são, apenas, sub-produtos de um capitalismo doentio. São dejetos que se pensam heróis, como os jovens atletas do Santos, que em frente a uma webcam demonstraram seu analfabetismo funcional, sua linguagem chula e sua completa falta de educação, xingando torcedores e ironizando colegas de profissão em um português irreconhecível.
Fora do campo, reina o mal exemplo. Dentro de campo, reinam o individualismo e o fundamentalismo religioso.
Apontar para os céus e dedicar o gol a Deus, atribuindo ao adversário uma consistente pobreza "da graça divina" tornou-se prática dominante nessa modalidade de esporte empurrada materialmente pelo enriquecimento fácil e, ideologicamente, pela crença de que, em campo, atletas empreendem uma "guerra santa" contra o "demônio" representado pelo contendor.
Ora, o que explicaria um deus qualquer torcer por um clube e não por outro, facilitando a marcação de um gol para agraciar um filho de deus que seria mais filho de deus do que os que vestem as cores adversárias?
Nada. Esse raciocínio é puramente irracional. Mas atende a um objetivo: reforçar o individualismo, a crença de que alguns podem mais que os outros, de que isso é "natural", talvez divino, e de que o coletivo só serve para dar suporte a esses poucos escolhidos. Desumanizada, a distinção entre massa e herói é o meio caminho entre a sanidade e a demência. Os brunos da vida e os moleques do Santos são ao mesmo tempo algozes e vítimas dessa danação que fabrica e destrói ídolos no atacado.
No último domingo, Corinthians e Palmeiras se enfrentaram no Pacaembu, empatando em um gol.
Ao final da partida, a imprensa chamou a atenção para a declaração do técnico do Palmeiras, Felipão, que afirmou não ter "a obrigação de ganhar sempre". Não tem mesmo. Especialmente porque não existe time que nunca perde. A dialética entre vitórias e derrotas é que forma a lógica real de qualquer contenda, esportiva ou não.
Para mim, a atenção se voltou para um gesto que passou como invisível aos olhos dos especialistas.
Apesar da posição duvidosa do finalizador, o gol do Corinthians mereceria ser validado como obra de arte, pela arquitetura primorosa que o antecedeu.
Somando passes criativos, velocidade, habilidade na conclusão, o lance culminou com o arranque fulminante de Bruno Cesar pela direita até cruzar com precisão para Jorge Henrique marcar, de letra.
Uma pintura. Um gol "de placa" como se dizia no tempo em que o futebol era um esporte coletivo.
Feito o gol, aí então vem a cena lamentável.
Jorge Henrique corre e, ao invés de abraçar Bruno Cesar e os demais companheiros que concorreram para o gol, empurra com violência o companheiro que lhe deu o passe e que apareceu duas vezes na jogada decisiva e, se desvencilhando, corre para comemorar sozinho com a torcida.
Um gesto fortuito? Não. Uma síntese. Uma lamentável síntese de um tempo.