sexta-feira, maio 26, 2006

Um museu de grandes novidades

Apesar dos prêmios, da visibilidade, do crescimento expressivo do lugar da publicidade no PIB nacional, é impressionante como a sociedade ignora o negócio da propaganda no Brasil. O verbo ignorar aqui não tem nenhuma conotação indireta. Diz respeito exatamente ao desconhecimento e, portanto, à ignorância dos “formadores de opinião” do país acerca dos mecanismos que regem o negócio da propaganda, seus instrumentos internos, suas especificidades, seus intrincados dutos de mútua comunicação.
Quem assistiu aos depoimentos dos publicitários chamados a prestar esclarecimentos às diversas CPIs, todas do fim do mundo, levadas a cabo em 2005 e, espraiadas até 2005 por razões puramente eleitorais, percebeu o primarismo dos questionamentos a que foram submetidos os dirigentes de agências de publicidade por parlamentares ávidos por holofotes mas pobres em conteúdo, confundindo receita com faturamento, Bonificação de Volume com honorários, contratação de serviços gráficos com bandalheira, numa vertigem quase lisérgica diante dos olhos atônitos da nação.
Mas a vertigem parece não ter fim. Fruto dela, a edição de 30 de janeiro, Meio & Mensagem faz uma chamada de capa instigante: “Congresso estuda criar regras mais claras para licitação de publicidade”.
Na página 32 não encontrei aquilo a que a chamada induzia. Ali, o ilustre deputado José Eduardo Cardozo (PT/SP) discorre sobre a necessidade de dar “transparência ao processo de escolha” de agências de publicidade, focando na necessidade de “evitar que profissionais de marketing político cujos clientes sejam eleitos tenha acesso facilitado a contas de governo”.
Afora a ótima idéia de segunda mão de garantir a apresentação das propostas técnicas em dois envelopes, um identificado e outro não - como já fez o Banco do Brasil em sua última licitação - em sua maioria as medidas propostas pelo deputado chovem no molhado porque partem de um desconhecimento extremo da Lei de licitações, das especificidades da atividade publicitária configuradas na Lei 8.666 e dos anteparos legais pré-existentes, como o Código Civil. Por isso Cardozo propõe “mudanças” que na verdade não mudam nada e ainda correm o risco de restringir ainda mais o acesso de pequenas agências às contas públicas federais.
Por que não mudam nada? Porque em sua maioria as medidas propostas por ele com grande estardalhaço já estão em vigor, faltando apenas fiscalização.
Por que restringem ainda mais o acesso de pequenas agências às contas públicas? Porque buscam afunilar critérios e limitar as contratações, concentrando na mão de poucos a já monopolizada verba de publicidade dos órgãos federais.
As propostas de Cardozo formam um precário museu de grandes novidades.
O deputado propõe que “contratos entre órgãos públicos e agências devem se referir somente à prestação do serviço de publicidade”. Essa prerrogativa já existe e está em vigor. A Lei de licitações é clara ao afirmar que o objeto da prestação de serviço não pode ser outro senão aquele configurado na atividade fim firmada no contrato social da empresa. Ou seja, uma agência de publicidade só presta serviço de publicidade. Ocorre que para prestar os serviços de publicidade precisa interagir com veículos e fornecedores. É assim desde que o mundo é mundo e nada mudará isso, seja aqui ou na Eslovênia.
O deputado propõe a criação “de instrumentos que reduzam a subjetividade na análise das propostas técnicas das agências que forem participar de concorrência pública”. Criar pra quê? Esse item também está garantido, em plenitude, na legislação atual. Se tivesse tomado o cuidado de ler um único edital de licitação de publicidade, veria que a subjetividade está presente em apenas um único item entre tantos, justamente o que se chama “idéia criativa” e que só pode ser analisado de maneira subjetiva. Todos os demais itens são objetivos, como infra-estrutura instalada, idoneidade fiscal ou pessoal dedicado ao trabalho. A apresentação de proposta técnica em envelope neutro é uma medida salutar para evitar que a licitação seja dirigida a obter um resultado pré-determinado, tornando o processo mais transparente, mas isso já está em prática.
O deputado propõe que “toda agência contratada tenha seu desempenho técnico avaliado”. Pelo amor de Deus! Este item já existe na legislação atual, tanto que a ruptura unilateral do contrato por parte do contratante está claramente configurada desde que “os serviços não estejam sendo desempenhados a contento”. Se existe a possibilidade de ruptura pelo descumprimento do contrato e por desempenho insatisfatório, é porque já existe a avaliação de desempenho.
É também idéia do deputado “evitar que uma agência que tenha feito a campanha eleitoral seja favorecida no momento da análise técnica”. Aqui há dois problemas: o primeiro é que o deputado intui que toda licitação onde uma agência que fez a campanha ganhou a licitação é, desde logo, suspeita. Isso é inaceitável. Uma agência que fez a campanha pode concorrer e ganhar a licitação desde que esteja apetrechada das condições técnicas e legais para tal. Em segundo lugar, parece querer limitar o acesso das agências que fazem campanha às contas públicas, o que é ilegal. A lei de licitações garante isonomia, ou seja, direito igual para todos, inclusive para as agências que atuam fazendo campanha, de concorrer em pé de igualdade, sem discriminação, nos processos licitatórios. Cercear essa liberdade é uma agressão ao direito que essas empresas têm de disputar concorrências apresentando suas competências.
Por fim, o deputado propõe a criação de “mecanismo que limite a liberdade atual dos governos para contratação de agências de publicidade”. Esses mecanismos já existem e são duplos: de um lado, é o limite orçamentário, de outro, é o limite constitucional. Nenhum governo pode fugir a eles, seja o presidente da República ou o prefeito da menor cidade do país. Os governos, em qualquer esfera, não podem gastar mais do que 1% de seus orçamentos com publicidade. Nem podem contratar a seu bel prazer. Para autorizar, precisam de provisão orçamentário-financeira; para executar, precisam se submeter à lei de licitação e seus prazos e regras. Dentro desses limites, não apenas podem como devem fazer comunicação, porque é dever do governo prestar contas e direito do cidadão saber onde e como o dinheiro público está sendo investido.
Aliás, tornou-se mister a imprensa se escandalizar com investimentos públicos em publicidade. Gastos anuais de governos com propaganda viram manchetes de jornais e chamadas em programas televisivos com a mesma ênfase com que se denuncia roubo a bancos e escândalos sexuais. Como se esses veículos, contra-partes de um sistema que é retroalimentado pela publicidade, não fossem os beneficiários finais desse investimento. Aqui e em qualquer lugar os demagogos e os ignorantes se atraem e se unem para atacar a publicidade, alegando que investimentos em comunicação minam o Estado e tiram dinheiro da saúde, da educação, da infra-estrutura. Acusados, estamos silenciando diante desses ataques vis. A decisão acéfala do prefeito do Rio de Janeiro de dispensar agência para fazer e veicular publicidade é parte dessa síndrome criminalizante que vivemos desde junho de 2005. No ápice da crise política, mais de um parlamentar demonstrava em rede nacional seu horror aos investimentos publicitários - que geram emprego e renda - mas nem ruborizam diante dos soldos e vantagens que recebem a título de representação e que são responsáveis por dispêndios sem retorno para o país.
Sejamos francos. O que está por trás desse discurso evasivo e ignorante é mais que, pura e simplesmente, a falta de noção de como, ao longo de décadas, o negócio da propaganda no Brasil se autoregulamentou, cresceu e se profissionalizou sem a tutela do Estado, forjando uma legislação clara e transparente que fez do Brasil uma potência no mercado publicitário mundial. Se nossa indústria siderúrgica tivesse o mesmo desempenho mundial que nossa publicidade hoje seríamos uma potência mundial e não um país eternamente “em desenvolvimento”. E essa ignorância também vem eivada de preconceito, como se todos nós fossemos vilões carecas vestindo paletós escuros e tendo como atividade-fim lançar mão do erário e distanciar-se dos ditames da ética. É o oposto. A publicidade no Brasil, através do Cenp, é um exemplo para o mundo de como um setor pode assumir as rédeas de sua própria atividade e, sem o anteparo do Estado, edificar regras e critérios que são obedecidos e seguidos por todos. As exceções, aqui, apenas corroboram a regra.
Mudança como “sorteio para definir os membros das comissões de licitações” proposta por Cardozo não é novidade alguma e já se tornou prática em centenas de municípios e dezenas de estados.
Em sua maioria, as “mudanças” propostas pelo deputado criminalizam o sofá, como naquela velha anedota, sem apontar efetivamente para os personagens que colocaram nele sua nódoa. Portanto, não apenas não resolvem o problema como tendem a agravá-lo.
Cercando toco para não chegar ao principal, o deputado esquece de citar que a grande concentração de verba pública nas mãos de poucas agências, sempre as mesmas, é a maior fonte dos problemas que se tornaram públicos em 2005.
Mas quem quer mexer com o monopólio das grandes agências, senhor Deputado?
Uma medida simples para conter os abusos no uso do dinheiro público em publicidade vai no sentido contrário de “limitar a liberdade” de contratar. Não é contratar menos, mas contratar mais. Por que uma verba bilionária como a do Banco do Brasil ou da Petrobrás tem que ficar na mão de duas agências apenas? Por que não dez, vinte agências? Por que não dividir por produto, por área de negócio, por região? Por que não licitar por lote?
Por que, deputado, concentrar é bom e diverficicar, regionalizar, parece tão ruim a quem controla verbas tão generosas?
Somente a contratação de milhares de agências de publicidade – e não meia dúzia e sempre as mesmas, como hoje acontece – pode democratizar o acesso, limitar os abusos e fortalecer o mercado de maneira vertical, de norte a sul do país. Esse é o roteiro para fazer o que Cardozo quer mas não sabe como.O resto é pirotecnia inútil e demagógica com forte odor de macarthismo.