Em ocasiões anteriores, o epíteto do anti-semitismo sempre apareceu. Agora, diante do enorme cogumelo da explosão que assisti ontem no noticiário sobre o massacre em Gaza, quando o horror internacional isola o governo israelense em um cerco de repulsa jamais visto - e o que é pior, deslegitima os argumentos contra o Hamas - voltou a aparecer. Mas é a velha manobra repetida: anti-semita é todo aquele que refuta a religião judaica. Chamar quem critica as ações do Estado de Israel de anti-semita é uma manobra sutil da extrema-direita israelense para vincular tais críticas a uma posição religiosa. Ao fazer isso, quem é contra as ações de um Estado (não a religião de seu povo) é associado a uma atividade moralmente questionável e passa a ter a sua opinião desqualificada. Como bem diz um escritor israelense - que é contra as brutalidades que vem sendo praticadas contra a população civil palestina - Israel não é um Estado que tem um exército, mas um exército que tem o SEU Estado.
Na ofensiva de relações públicas que governo e aliados do Estado judeu lançam para contrabalançar a brutalidade de seu exército, várias armas estão sendo usadas. Uma delas é a internet: minha caixa de emails recebe, diariamente, pelo menos uma dezena de mensagens de releases oficiais, blogs e newsletters com "a versão que a imprensa internacional prefere não contar ou que os correspondentes escondem". O curioso disso é a acusação de unilateralidade da informação: mas se a censura militar impediu, ou tentou impedir, que os olhos do mundo acompanhassem o que os soldados fazem no território ocupado, que distorção maior poderia haver do que poder contar apenas um lado da história? A sorte até hoje é que apesar de todas as tentativas, os palestinos sempre conseguem arrumar alguma forma de fazer com que seu grito chegue ao resto do mundo. Nenhuma dessas correspondências traz qualquer dado ou versão pela ótica palestina. Todos têm o mesmo destino: o lixo.
Entre os elementos de pressão mais atuantes está, inclusive, um site encarregado de monitorar diariamente tudo o que a imprensa brasileira publica contra as ações do governo israelense. Já tive a honra de ser citado algumas vezes por esses rastreadores a serviço da intolerância, que além de reproduzirem as reportagens ou artigos dos jornais e sites, ainda incitam comentários raivosos e mais intolerantes ainda contra o direito de cada um expressar livremente sua opinião. Como fiquei no mailing desse pessoal, acompanho a sua atuação também. Assim, quem me vigia tambem é vigiado por mim. É a minha forma de denunciar a maneira arrogante de tentar impor o ponto de vista.
Aliás, rastreamento é uma palavra comum nessa rede: em 2001, propus um projeto ao jornal, de publicar um caderno especial intitulado Diários da Palestina. A idéia era reunir depoimentos de pessoas que viviam nas cidades árabes sob o cerco israelense em Gaza e na Cisjordânia de forma a que contassem o que é o cotidiano da ocupação, descrevendo em poucas linhas sua rotina diária sem qualquer consideração política. Na época enviei vários emails a entidades e pessoas que localizei pela internet, algumas nos territórios, outras vinculadas, por exemplo, ao próprio comitê de refugiados da ONU. A idéia de reunir depoimentos apenas de palestinos não tinha conotação ideológica de dar uma "visão unilateral", mas de retratar a forma de superar no dia a dia as restrições à liberdade impostas por uma força externa. Ingenuamente, achei que a menção à exigência de não-politização dos textos me deixaria fora do alcance das críticas. Por questões de custo industrial, o projeto acabou não indo adiante, embora eu tivesse recebido pelo menos cinco depoimentos muito interessantes já nos dias subsequentes.
Meses depois, fui surpreendido por uma carta arrogante e ameaçadora, enviada com o timbre diplomático israelense. Na correspondência, o representante do governo questionava meu projeto "pela visão unilateral da questão do Oriente Médio", embora eu não tivessse enviado qualquer correspondência a alguém de seu governo ou ligado a ele. Como teve acesso às informações do projeto se não as enviei? A carta era acompanhada pelo email padrão que despachara aos contatos palestinos. Além dela, acompanhavam a correspondência cópias dos emails que troquei com as entidades e pessoas na Cisjordânia, em Gaza e até em Amã, na Jordânia. Quem violou minha correspondência ou a de meus interlocutores? Quem deu e esse Estado o direito a interceptar mensagens que eu troquei com aquelas pessoas? O incidente irritou profundamente o então editor-chefe do jornal, a quem a carta do representante diplomático foi, covardemente, encaminhada. Depois de discutirmos o que fazer, redigimos uma resposta dura e devolvemos ao remetente, pedindo que nunca mais nos procurasse.
Em outros blogs e newsletters, o tom é mais sutil. Em geral, repisam o argumento de que a responsabilidade pelo morticínio imposto a uma população civil é de quem se mistura em meio a ela como tática para evitar represálias pelos ataques de foguetes contra as cidades israelenses. No caso, do Hamas. Usam o argumento favorável à convivência pacífica com os palestinos verdadeiramente interessados na paz duradoura e sempre repetem que não consideram a todos os palestinos inimigos. Mas a questão é que não condenaram ou condenam a expansão continua dos assentamentos como uma estratégia para impedir a consecução de um Estado palestino com território contínuo, não recriminam a forma como o muro de concreto isolou cidades palestinas como Qalqylia ou Tulkarem, cercadas e blindadas por portões que, à noite são fechados e guardados por soldados de Israel. Quando estive lá, notei que a única forma de palestinos dos dois bantustões se comunicarem é por uma estrada de 5 km - cortada por um posto de controle e por um contingente militar de Israel.
O argumento da segurança, de barrar a passagem de homens-bomba, não é mais forte que a percepção de imposição de um sacrifício coletivo como um subterfúgio para tornar a vida ali inviável, forçando a desocupação e o abandono da terra. Da mesma forma, jamais li nesses blogs ou newsletters condenações às táticas militares de tomar terras sob argumento da propriedade irregular, quando a presença palestina no local é anterior à ocupação israelense, portanto é uma imposição dela. Uma das táticas aplicadas nessas ocasiões é a de cortar rapidamente as oliveiras ou outras árvores que as famílias árabes plantam como parte de sua agregação e simbologia social. Até ler sobre essa simbologia em livros de autores também árabes não entendia porque as fotos que recebia nessas ocasiões mostravam tanta exaltação e revolta entre as pessoas atingidas. No subconsciente coletivo, a perda era a decretação de sua expulsão daquela terra. E de sua desintegração como família. Da mesma forma nunca encontrei críticas à ação de tanques do exército em operações militares que via retratadas, nas quais encanamentos de água e redes de esgoto eram consideradas alvos prioritários. Sem ambos, a vida também deveria ser inviável nas cidades palestinas.
Por Marcelo Ambrósio