Um escândalo agita a Inglaterra. E dele ninguém se salva. Tudo começou em 2006, quando vieram à tona os métodos pouco ortodoxos que o jornal britânico News of the World, de propriedade do magnata da mídia, Rupert Murdoch, usava no dia a dia da reportagem : detetives contratados com cachês milionários e escutas telefônicas ilegais para interceptar mensagens deixadas nas caixas postais de determinados celulares, no intuito de conseguir informações em primeira mão. Entre as vítimas estão celebridades, políticos e até membros da família real. O telefone de Diana estava grampeado, assim como o de Jean Charles, que morreu assassinado no metrô de Londres. Mas o caso só virou escândalo no início de julho, quando se soube que entre os telefones espionados estava o de uma menina que havia sido recentemente assassinada de forma misteriosa; parentes de soldados mortos no Afeganistão e Iraque e até vítimas do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, também foram vítimas de espiões.
Desde então, dez pessoas já foram presas – e soltas sob fiança –, incluindo Andy Coulson, ex-assessor de comunicação do primeiro-ministro da Inglaterra, David Cameron, e dois altos comissários da sempre tão “pulcra” Scotland Yard já caíram. Na terça-feira, Murdoch, seu filho James, a ex-diretora do grupo, Rebekah Brooks, e os dois ex-chefes da Scotland Yard foram interrogados no Parlamento. Os deputados queriam saber se estavam envolvidos nos grampos telefônicos “em escala industrial” (expressão usada pela imprensa inglesa), se fizeram pagamentos ilegais à polícia em troca de informações e uso de equipamentos de escuta e se tentaram “comprar” certos políticos tanto do Partido Conservador quanto do Partido Trabalhista. Como era de se esperar, todos negaram tudo.
Mas mesmo assim o conglomerado News Corporation está abalado e teve de fechar as portas do tabloide News of the World, um dos mais vendidos na Grã-Bretanha. Sob pressão do Parlamento e de David Cameron, Murdoch também foi obrigado a retirar sua oferta para comprar todas as ações da plataforma de televisão BSkyB - a Sky britânica -, que ele vinha ambicionando há tempos.
Quem é Murdoch?
Rupert Murdoch nasceu na Austrália, mas se naturalizou norte-americano. É um dos homens mais poderosos da imprensa mundial e também um dos mais ricos e influentes. Hoje com 80 anos, é o presidente da News Corporation, empresa herdada de seu pai e da qual é importante acionista. À época, era apenas uma empresa medíocre, controladora de um jornal australiano na cidade de Adelaide, sem muito renome. Mas com a administração ambiciosa de Murdoch e uma série de aquisições bem sucedidas, conseguiu transformá-la em um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, tornando-a controladora dos estúdios de cinema e dos canais de TV paga FOX, das operadoras de TV por assinatura SKY e DirecTV (incorporada no final de 2003 pela News), do site de relacionamentos My Space, do jornal New York Post, entre outros. O grupo News Corporation também é dono do primeiro jornal exclusivo para o iPad, o The Daily, lançado recentemente nos EUA. A entrada em cena do The Daily é uma tentativa de Robert Murdoch para reescrever o negócio do jornalismo, depois da queda das receitas de circulação e publicidade nos jornais tradicionais.
Em agosto, Murdoch definiu o The Daily como “uma verdadeira mudança na apresentação de notícias” e o seu projeto “número um, o mais interessante”. A equipe editorial do jornal será “modesta” e englobará jornalistas de outros órgãos da News Corporation, como o Wall Street Journal. O jornal obrigará a um investimento inicial de 30 milhões de dólares (cerca de 23 milhões de euros).
De acordo com a revista Forbes, Murdoch está posicionado em 117º dentro do ranking das pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna estimada em 6,3 bilhões de dólares. Agora, além de tentar assumir o controle total da Sky, Murdoch vinha atacando a BBC, como forma de destruir seu poder na Inglaterra.
Reconhecido como direita linha dura, Murdoch usava seus veículos de comunicação para fazer um jornalismo escandaloso, que apelava para os escândalos sexuais, estampava em seus tabloides sensacionalistas os conflitos familiares como forma de assédio moral contra este ou aquele adversário. Seus jornais faziam campanha declarada contra os negros, os homossexuais e os imigrantes, chamando abertamente a que deixassem o país por serem pessoas indesejadas e apelando ao governo para que os reprimissem.
São conhecidos também seus ataques contra a classe trabalhadora. Os jornais e emissoras do grupo Murdoch sempre lançaram seu veneno mais corrosivo diante de qualquer movimento dos trabalhadores. Seus jornais sempre tiveram uma postura agressiva, de ataque às greves e manifestações sindicais, e usava seu poder midiático para lançar todo tipo de ataques pessoais contra as lideranças e os ativistas de esquerda, criminalizando suas ações e influenciando a opinião pública contra eles.
Também é muito conhecida na Inglaterra a ação de Murdoch para eleger e para derrubar os políticos; ele soube usar os grampos telefônicos, as páginas de seus jornais e sua imensa fortuna para apoiar o Partido Trabalhista em 1997 e com isso ajudou a eleger Tony Blair como primeiro-ministro. Sustentou o governo trabalhista durante todo o seu período, incluindo a intervenção de Blair e Bush na Guerra do Iraque e Afeganistão. Depois, em 2007, ajudou a eleger o sucessor de Blair, Gordon Brown, que também estava na lista dos “grampeados” e, em 2010, Murdoch passou a apoiar os Tories (Conservadores) e jogou todo o seu prestígio na campanha de David Cameron e dos Democratas Liberais.
Governo britânico envolvido até o pescoço
Tudo isso vinha correndo a olhos vistos. Os métodos pouco confiáveis de Murdoch de conduzir seu império, as mentiras e confabulações nos corredores do governo corriam soltos. Mas a coisa engrossou quando veio à tona que o governo do primeiro-ministro David Cameron estava envolvido até o pescoço com Murdoch. No mínimo, ele sabia de tudo e não fez nada. O maior vexame é que Cameron, em meio à enorme crise econômica que vem abalando a Europa, incluindo a Inglaterra, teve de engolir mais esse sapo: explicar diante do Parlamento por que havia sido citado em todos os depoimentos daqueles que o antecederam, ou seja, o próprio Murdoch, seu filho James, a ex-diretora do grupo Rebekah Brooks e os dois ex-chefes da Scotland Yard, a polícia metropolitana londrina. A ligação entre Murdoch e Cameron veio por intermédio de Andy Coulson, assessor de comunicação do primeiro-ministro. Agora Cameron diz que Coulson agia por baixo dos panos, mas pouca gente acredita nisso.
Dois dias depois de explodir o escândalo, um dos mais importantes repórteres do jornal News of the World apareceu morto em casa, em circunstâncias misteriosas. Sean Hoare, que cobria o show business, vinha denunciando os grampos e todos os métodos pouco convencionais de fazer as reportagens impostos pela empresa e, por isso, vinha sendo perseguido. Depois de afirmar em uma entrevista que o assessor de Cameron, Andy Coulson, sabia de tudo, seu cadáver apareceu, para piorar ainda mais as coisas para o governo. A polícia está tentando encobrir o caso, dizendo que Hoare era viciado em drogas e alcoólatra, mas até agora não deu qualquer explicação convincente para a morte do repórter. (The Independent, 19/7/2011)
Em seu depoimento, Cameron teve de assumir a responsabilidade por ter contratado Andy Coulson como assessor de comunicação. O jornalista, ex-diretor do News e acusado de aprovar os grampos e corromper policiais, foi preso e solto após pagamento de fiança. “Assumo a responsabilidade por ter contratado Coulson, mas não respondo pelo que ele fez”, disse Cameron, empurrando com a barriga e alegando que agora é hora de “limpar a bagunça”, pois o escândalo abalou a confiança do público na polícia e na imprensa. Ele fez questão de defender toda a sua equipe, afirmando que todos agiram “de maneira correta”, inclusive seu chefe de gabinete, Ed Llewellyn, que teria omitido algumas informações do premiê sobre o caso no início das investigações. “Eu disse repetidamente que eles deviam seguir as pistas a fundo e conduzir a investigação como achassem melhor. Meu funcionário agiu corretamente. Não era apropriado que eu tivesse nenhuma informação privilegiada.” Sobre Coulson, disse que, se for comprovado seu envolvimento no caso, ele deverá pedir desculpas e pode até ser processado.
Mas a coisa não para aí. Cameron é acusado também de manter uma relação muito próxima com a família Murdoch e com a ex-diretora da companhia, Rebekah Brooks. O magnata admitiu, inclusive, no seu depoimento, que chegou a fazer com ele uma reunião a portas fechadas, para a qual entrou “pela porta dos fundos”. A reunião teria sido feita para acertar as formas de como o governo poderia influenciar nas negociações de compra da totalidade de ações da TV BSkyB por parte de Murdoch.
Sem chance de escapar ileso, Cameron vem atirando pra todo lado e assumindo uma postura mais agressiva ao afirmar que a oposição também tem culpa pelo escândalo, uma vez que, segundo ele, ambos os partidos “exageraram nos encontros com a imprensa” e deixaram de lado os esforços para uma maior regulação do setor de comunicações. Para ele, a culpa, neste sentido, deveria ser dividida, pois afirma que seus antecessores, os ex-premiês Tony Blair e Gordon Brown, mantinham um “relacionamento mais próximo com o império Murdoch” do que ele.
Ele assume ainda que a imprensa alertou várias vezes tanto o Parlamento quanto a polícia de que haveria algo errado na News International - filial britânica do grupo norte-americano News Corporation -, mas que nenhum dos partidos, quando governantes, fez nada a respeito. “O Partido Trabalhista teve 13 anos para abrir um inquérito sobre isso e não o fez. Não fez o que eu estou fazendo agora”, declarou ele, definindo-se como “muito mais transparente” que os premiês anteriores. “A oposição poderia ter assumido sua participação neste escândalo e nos ajudar a limpar essa bagunça. Em vez disso, só apareceram aqui com teorias da conspiração.”
Cameron também culpou seu antecessor Gordon Brown pela contratação de Coulson. Disse que a primeira pessoa a contatar Coulson foi Gordon Brown. Coulson foi o redator-chefe do News of the World entre 2003 e 2007, período em que os grampos já haviam sido adotados como prática comum no tabloide, mas que ele garantia não ter nenhum envolvimento. Em 2007, foi contratado como assessor de imprensa por Cameron e continuou na equipe do líder conservador, que venceu a eleição seguinte e assumiu o cargo em 2010.
O fato é que ambos – conservadores e trabalhistas – não conseguiram se livrar do envolvimento no escândalo. Ed Milliband, principal dirigente do Labour (Trabalhistas), vem dando seguidas declarações à imprensa dizendo que não tem nada a ver com isso, mas a realidade é que durante todo o governo de Blair e Gordon o partido não fez absolutamente nada para impedir as ações de Murdoch.
Trabalhadores não estão calados
A relação promíscua entre a imprensa, a polícia e o governo é algo comum em todos os países do mundo, e isso afeta diretamente a classe trabalhadora. Tanto é assim que os trabalhadores ingleses vêm se manifestando contra o escândalo. A mídia empresarial tornou-se uma das mais importantes instituições do Estado burguês ao ser controlada pelo empresariado, o grande capital, bancos e empresas, tornando-se praticamente um apêndice das grandes corporações financeiras.
A maioria dos jornais e emissoras está nas mãos de poucos proprietários, em geral milionários que mantêm estreitas relações com o governo, já que ambos têm o mesmo programa de confronto contra a classe trabalhadora. Com isso, a grande mídia passou a ser porta-voz da burguesia e usar seus métodos para conseguir o que quer. Quando o caso envolve um dos homens mais poderosos do mundo, como Murdoch, cujos negócios estão espalhados por três grandes países como Estados Unidos, Austrália e Inglaterra, essa ligação da imprensa com o poder fica ainda mais evidente e os estilhaços atingem um maior poder de fogo. Um jornal que usa grampos para espionar celebridades pode muito bem usar os mesmos grampos para espionar os sindicatos e os ativistas de esquerda, ou fazer coisas piores, como vinha fazendo Murdoch com sua “imprensa marrom”.
Em meio a um clima de luta contra o governo e a política de cortes nos serviços públicos, que vem provocando grandes mobilizações de rua na Inglaterra, o escândalo Murdoch assume um outro caráter, com os trabalhadores se envolvendo nas discussões. É o caso, por exemplo, dos funcionários públicos federais (Public Civil Service), que lançaram no último dia 14 uma declaração afirmando que é preciso ter sindicatos fortes para prevenir outro escândalo de grampos telefônicos:
“As recentes revelações sobre as atividades ilegais da News International chocaram o país, mas não foi surpresa para ninguém. Como muitos, nós não esqueceremos a propaganda da misoginia, do anti-bem-estar (anti-welfare), da anti-imigração e do antissindicalismo com que o News of the World enchia suas páginas semana sim, semana não. Mas, acima de tudo, nós condenamos a decisão de simplesmente fechar o jornal e colocar centenas de empregos em risco, enquanto os reais culpados - os Murdochs e Rebekah Brooks – mantêm seus empregos.
Os funcionários públicos federais exigem um sistema mais efetivo de regulamentação da imprensa, mas dizem que a melhor forma de garantir que outros escândalos similares não ocorram é assegurar a forte presença do sindicato em todas as redações de jornais e emissoras.
Em solidariedade à NUJ (sindicato dos jornalistas) e outras associações de trabalhadores da mídia, nós lutamos por uma imprensa mais efetiva, mais ética, mais livre para poder investigar e cobrar dos poderes públicos.”
Em defesa da liberdade de imprensa
É preciso ter claro que, enquanto tivermos um governo burguês, será difícil conseguir uma imprensa mais ética e mais livre, porque ela sempre será uma empresa capitalista, dependente do poder e do dinheiro do Estado. No entanto, os trabalhadores devem ser intransigentes na defesa da mais ampla liberdade de imprensa para todos, porque essa é a única maneira de a verdade dos fatos vir à tona. Como dizem os funcionários federais em sua declaração, é preciso fortalecer os sindicatos e, sobretudo, a imprensa dos trabalhadores, para que a população tenha uma contraposição às informações veiculadas pela imprensa burguesa e não tenha acesso apenas a um lado da questão.
Por outro lado, é preciso lutar contra o fechamento do News of the World porque isso significa que centenas de jornalistas e outros funcionários perderão seus empregos. Muita gente na Inglaterra acha que esse é um jornal “sujo” e deve ser fechado. Então, para sermos coerentes, deveríamos exigir o fechamento do The Sun, outro tabloide “marrom” de Murdoch, bem como de todos os jornais de seu grupo, além de vários jornais de outros grupos de mídia. Com isso, milhões de trabalhadores perderiam seus empregos e o problema não seria resolvido, porque a burguesia cria outros jornais ou outras emissoras para não perder seus lucros.
Neste momento, sobretudo, o que os trabalhadores britânicos precisam é ficar atentos para que o governo não use o “caso Murdoch” para distrair a atenção dos graves problemas econômicos que o país vem atravessando, como o pacote de medidas vorazes que vêm cortando salários, empregos e privatizando os serviços sociais. Como disse Emily Thornberry, porta-voz do Partido Trabalhista para assuntos da Saúde, “hoje é um bom dia para o governo anunciar o plano de privatização do serviço de saúde porque todo mundo está preocupado com os grampos telefônicos. Eles acham que assim ninguém vai perceber” (The Guardian, 20/7/11). Apesar de ser do Partido Trabalhista, que uma vez no governo não defendeu os interesses dos trabalhadores, Emily tem razão.
Um novo momento na Inglaterra
Mas hoje se vive um momento diferente na Inglaterra. Os trabalhadores vêm se mobilizando contra os cortes e as privatizações, e esse escândalo pode ajudar a desmascarar o governo perante as massas. Mas, para isso, as organizações mais combativas dos trabalhadores precisarão, diante do escândalo, retomar os tradicionais métodos de combate da classe operária inglesa, fortalecendo ainda mais suas lutas, unindo a reivindicação de expropriação do império Murdoch à luta contra os cortes e as privatizações.
O governo alega que não tem dinheiro para manter os serviços públicos. Então, é preciso expropriar a fortuna de Murdoch, inimigo declarado dos trabalhadores, bem como outras imensas fortunas que foram sendo acumuladas por uns poucos milionários às custas da exploração dos trabalhadores.
O governo está metido até o pescoço no caso e, portanto, é um governo corrupto, que usa seu poder para atacar os direitos da classe trabalhadora, usa a grande imprensa para atacar os imigrantes, os homossexuais e criminalizar as nossas lutas.
Expropriação do império Murdoch! Dinheiro para garantir a saúde pública e de boa qualidade para todos! Fortalecer a organização dos trabalhadores (os sindicatos e as Comissões Internas)! Construir uma forte imprensa operária para que a verdade dos fatos possa vir à tona e melhor lutar contra o governo Cameron e impedir os cortes e as privatizações! Essa deve ser a alternativa dos trabalhadores neste momento histórico, quando a valorosa classe trabalhadora inglesa se esforça para retomar seu passado de lutas, quando obteve grandes conquistas sociais!
Cecília Toledo, autora deste post, é também autora do livro “Mulheres: O gênero nos une, a classe nos divide”