A revista estadunidense de orientação marxista Monthly Review, em seu editorial de outubro 2008, analisa o caráter da atual crise do capitalismo financeiro e pergunta o que deveria a esquerda dos Estados Unidos fazer nesse momento. Embora longo para ser postado em um blog - que, manda a regra, se limite a textos menores - vale muito a pena conhecer a análise da esquerda que vive, literalmente, no olho do furacão.
Eis o editorial.
No editorial do número de Setembro da Monthly Review perguntávamos por que não havia indignação pública nos Estados Unidos com o pacote de salvação do setor financeiro. Como observamos naquele momento, "afinal de contas parece não haver explicação satisfatória para a falta de protesto popular sobre uma série de doações ad hoc que derrama centenas de milhões de dólares de dinheiro público sobre o grupo mais rico de capitalistas do planeta. E isto levanta a questão: Estaria a indignação, no entanto, crescendo subterraneamente, não sendo ouvida e não sendo vista? Será que ela arrebentará subitamente, como uma velha toupeira, de forma imprevista e de modo não imaginado?".
O colapso do Lehman Brothers em 15 de Setembro, o congelamento dos mercados de crédito, o plano de emergência do secretário do Tesouro Henry Paulson de um salvamento de US$700 milhões de firmas financeiras, oferecendo "dinheiro por lixo", isto é, propondo comprar os resíduos tóxicos de títulos apoiados por hipotecas virtualmente sem qualquer valor a expensas do contribuinte - respondeu rapidamente à nossa pergunta. Quando o Tesouro dos EUA envolveu-se no ato com a sua proposta de salvamento, requerendo autorização do Congresso, desencadeou-se o inferno. Subitamente, a indignação pública que estivera submersa explodiu. A classe capitalista estadunidense foi abruptamente confrontada com uma grande crise política, assim como econômica.
A ira visível da população quanto ao plano de salvamento não impediu o Departamento do Tesouro, a liderança do Congresso, o presidente, e os dois candidatos presidenciais - juntamente com o capital financeiro - de avançarem e remendarem em conjunto um acordo baseado em grande medida na proposta original de Paulson. O que era completamente inesperado, contudo, foi a revolta na Câmara dos Deputados em 29 de Setembro, com 133 republicanos e 95 democratas votando contra o pacote de salvamento dos US$ 700 mil milhões, levando à maior queda pontual na história do mercado de ações dos EUA.
Não há dúvida, os detentores do poder logo abriram o seu caminho, e uma versão da proposta do Departamento do Tesouro, com elementos acrescentados destinados a dar cobertura política aos representantes que alteraram os seus votos, foi logo aprovada. Mas a revolta inicial na Câmara mudou para sempre a natureza da pior crise financeira desde a Grande Depressão, tornando-a pela primeira vez abertamente política, deixando uma herança de discordância popular. A politização da questão do salvamento e as cada vez mais desesperadoras condições econômicas garantem que as conseqüências a longo prazo para o capitalismo estadunidense serão imensas.
Ninguém tem uma bola de cristal para olhar o futuro, e a natureza desta crise torna impossível prever o que acontecerá. Mas umas poucas coisas parecem óbvias. Primeiro, o salvamento a ser executado pelo Departamento do Tesouro, apesar de maciço, na melhor das hipóteses apenas impedirá um colapso imediato. Ele não porá fim à crise financeira. O gênio da financeirização está fora da garrafa e vai levar tempo para enfiá-lo ali outra vez. A crise dos empréstimos habitacional e hipotecário de qualquer forma não foi debelada. O Fed e outros agentes do governo federal já despejaram mais do que os US$700 mil milhões do pacote do salvamento (incluindo resgate de hipotecas de casas) no sistema financeiro ao longo do ano passado na forma de empréstimos, garantias, swaps, dádivas e tomadas de controle ("A Tally of Federal Rescues", New York Times, September 28, 2008; "Treasury and Fed Looking at Options", New York Times, September 29, 2008). Ao mover-se rapidamente da condição de prestamista de último recurso para a de investidor de último recurso, o governo federal esticou enormemente os seus recursos - já sob tensão devido às guerras do Iraque e do Afeganistão.
Segundo, o declínio rápido da hegemonia econômica dos EUA agora é óbvio para todo o mundo e é provável que prejudique a vontade de investidores e governos estrangeiros de tomarem dólares - o que é necessário para financiar a dívida crescente dos EUA. Cresce a pressão internacional para impedir Washington de exportar a sua crise para fora. O presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva pediu que os estados latino-americanos, africanos e asiáticos não fossem transformados em "vítimas do cassino erguido pela economia americana" ("U.S. Crisis Deepens Divisions in S. America," Washington Post, October 1, 2008). Na verdade, o imperialismo estadunidense está enfraquecendo visivelmente por toda a parte.
Terceiro, o problema real ainda não está sendo tratado: a estagnação da economia dos EUA (e de países capitalistas avançados). Isto não é tanto um efeito da crise financeira, como habitualmente se supõe, e sim em primeiro lugar a causa do vasto crescimento da superestrutura financeira - e a razão porque a explosão da bolha financeira é um desastre tão imenso e atualmente inultrapassável (ver "The Financialization of Capital and the Crisis," MR, April 2008). A estagnação da produção, simbolizada pelos recentes US$25 mil milhões em garantias federais a empréstimos aos grandes fabricantes de automóveis, recebeu relativamente pouca atenção face à crise financeira astronômica, mas continua no cerne do mal-estar econômico.
Finalmente, agora está penetrando profundamente na consciência pública nos Estados Unidos que a questão mais importante no fim das contas é: Quem pagará? O acordo do salvamento evadiu-se à questão ao deixar para o próximo presidente sugerir um caminho para compensar o público pelas perdas com a compra de lixo financeiro tóxico pelo Tesouro. O que isto significa é que a batalha política real apenas começou.
Crise irreversível
Se são estas as dimensões principais do problema, o que deveria a esquerda estadunidense fazer nesta altura? Não é uma pergunta de resposta fácil. Não é nossa tarefa consertar o sistema. Nem é ele de fato consertável. Como Harry Magdoff e Paul Sweezy argumentaram em 1988, no rescaldo na crise do mercado de ações de 1987, isto é, julgado a partir de uma visão mais ampla, uma Crise Irreversível. Não há, portanto soluções visíveis. Sob tais circunstâncias, a ênfase deveria ser sobre a redução da desigualdade, o fortalecimento da posição dos trabalhadores, proporcionar empregos decentes para pessoas efetuarem o trabalho para o qual estão preparadas, e garantir bens sociais essenciais como: cuidados de saúde adequados, alimentação, habitação, educação, Segurança Social, pensões de reforma e proteção ambiental. Os gastos militares deveriam ser cortados drasticamente e utilizados para financiar programas sociais necessários. Deveria ser aplicado um imposto sobre o comércio de títulos e idealmente também um imposto sobre a riqueza.
Tais coisas só podem ser alcançadas, contudo, se a população se levantar e exigir controle sobre a política econômica. Mais uma vez, não deveríamos pretender nem por um momento que qualquer destas coisas repararia o que há de errado com o sistema capitalista. Não o faria. Mas algumas destas medidas são necessárias para criar uma vida melhor para a vasta maioria da população, e como um passo de afastamento do capitalismo e em direção a uma melhor alternativa socioeconômica.
Certamente há algo a dizer quanto à visão do deputado Peter DeFazio (D-OR) quando, em resposta ao salvamento de Paulson, escreveu ("Wall Street Bailout Won't Help Main Street," Eugene Register-Guard, September 29, 2008): "Na Workds Progress Administration, do presidente Franklin Roosevelt, investimos em construção de estradas, pontes, barragens hidroelétricas e outros projetos de obras públicas para reconstruir a economia quebrada do nosso país". DeFazio avançava para argumentar que se um plano de salvamento deveria ser adotado este deveria ser pago por uma transferência fiscal de títulos, tal como realmente existiu nos Estados Unidos de 1914 a 1966.
O senador Bernie Sanders, de Vermont, propôs um [plano] de cinco anos, com uma sobretaxa de 10 por cento sobre indivíduos com rendimentos de mais de US$500 mil por ano e sobre famílias com rendimentos de mais de US$1 milhão por ano. Nada disto resolveria as contradições nucleares do sistema. Mas tais ações representariam um arranque na direção correta. É mais do que tempo de que na implacável guerra de classe que tem sido travada pela classe capitalista contra a classe trabalhadora, desde o princípio da década de 1970, o povo estadunidense pelo menos comece a defender-se em massa, insistindo para que as suas necessidades sejam atendidas. Em grande parte do resto do mundo a existência contínua da ordem do capital monopolista-financeiro dominado pelos EUA, habitualmente identificada como neoliberalismo, já está - ou estará em breve - a ser desafiada.
Estes problemas serão discutidos mais completamente na revisão do mês de Dezembro e num livro de John Bellamy Foster e Fred Magdoff, The Great Financial Crisis: Causes and Consequences, a ser publicado em Janeiro pela Monthly Review Press.
Não precisamos recordar aos leitores da MR que o atual desastre econômico é apenas parte de um fracasso mais geral do sistema capitalista, e que há outras razões igualmente prementes para a revolta: mais notavelmente, as crescentes catástrofes da guerra e da destruição ambiental. O que estamos enfrentando muito claramente é um novo momento histórico, no qual uma política genuinamente radical pode voltar a ser possível - no próprio Estados Unidos.
É hora de uma governança global?
Nos últimos 15 anos, a internet permitiu que o dinheiro fosse transmitido de um canto a outro do planeta com um clique. Em 2008, possibilitou mobilizar milhões de eleitores para produzir a eleição mais cara da história no país mais poderoso do mundo. Agora, os dados estão lançados: as próximas mudanças afetarão as regras da democracia e talvez terminem por mudar a maneira como os países se organizam.
O comentário é de Pedro Doria e publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 03-11-2008.
Nossos maiores problemas não são nacionais. Ameaça de colapso financeiro, aquecimento global, flutuação nos preços de alimentos vinda de especulação financeira, tráfico, pirataria e crimes cibernéticos. O grande desafio é que nenhum governo, sozinho, tem o poder de resolver esses problemas.
Nas próximas décadas, precisaremos de um novo tipo de governo.
Para compreender a questão, visitei o Instituto Para o Futuro (IFTF), um dos mais importantes centros de pesquisa do Vale do Silício (Califórnia), dedicado inteiramente a compreender como as mudanças tecnológicas estão mudando o planeta. Quem me recebeu lá foi Jake Dunagan, um cientista político formado pela Universidade do Havaí, conhecida por seu departamento de futurologia.
"De onde nasceu nossa democracia representativa?", pergunta Jake, que responde em seguida. Quando os americanos inventaram o que entendemos por democracia, no século XVIII, o ritmo era outro. Uma carta vinda do norte dos EUA demorava algumas semanas para chegar ao sul. Simplesmente não havia como todos os cidadãos com direito a voto se reunirem numa praça, como acontecia em Atenas, para tomar decisões. Mais simples foi reunir representantes eleitos pelos estados em um parlamento. "Agora que temos a tecnologia para ouvir todos os eleitores, não deveríamos cogitar em implementar uma democracia direta?" Que se dispense o parlamento. Todos votam diretamente, pela internet ou pelo celular.
A idéia tem críticos. Há algumas semanas, num debate na Universidade de Berkeley, Larry Lessig lembrou alguns dos defeitos da democracia direta. Deputados, idealmente, têm por trabalho se especializar nos dilemas que afetam uma nação. Algumas questões são profundamente técnicas, ninguém vai se especializar em tudo para decidir o que é melhor. Lessig é um dos maiores especialistas nesse complicado encontro das leis com a tecnologia. Sabe do que fala.
Mas Dunagan também: "Nós vivemos no século XXI e, no entanto, temos uma estrutura mundial idealizada no século XVIII." Não temos um governo mundial com o poder de determinar o corte de emissões de carbono, por exemplo. E nenhum governo nacional quer ser o primeiro a fazê-lo. Afinal, quem parar de gastar energia também pára de crescer.
"O modelo do Estado-nação sozinho não resolve mais", continua Dunagan. Ele considera que algum tipo de governança global com poder de verdade, bem diferente da ONU, terá de surgir. Toda a macroestrutura global de telecomunicações integrou o mundo de uma forma tal que, se um quebrar, todos sofrem.
A campanha presidencial americana deste ano já insinua mudanças profundas. Uma delas atende pelo nome MoveOn.org. É uma ONG de esquerda que, em 2008, arrecadou mais de US$ 100 milhões pela internet. Em Washington, é o dinheiro que fala. A indústria do petróleo investe milhões em lobby no Congresso. Nações estrangeiras que querem influenciar a política dos EUA fazem o mesmo. Jamais uma ONG militante teve poder de intervir nesse jogo. Agora, tem.
Até um ano atrás, a origem do dinheiro tanto do Partido Democrata quanto do Republicano estava em grupos que têm interesses específicos. Isso também mudou quando Obama passou a arrecadar grande quantidade de recursos diretamente dos eleitores, pela web.
Quem navega pelo mar de blogs políticos nos EUA, no Brasil, onde for, logo percebe que esse é um jogo para apaixonados. São os apaixonados que doam para as MoveOn.orgs da vida. Suas opiniões são fortes, as convicções irremovíveis. Na versão online da democracia, há muita gente falando, mas são poucos os que ouvem.
"A tendência na rede é de que as pessoas se reúnam com quem compartilha suas opiniões. Já a democracia depende do diálogo", explica Dunagan. "Quando convivemos com idéias diferentes, tendemos à moderação. Mas quando só encontramos gente com quem concordamos, aí radicalizamos nossos pontos de vista. Criamos a ilusão de que somos mais ideologicamente puros, de que não temos dúvidas."
Finalmente, com a internet grupos populares têm condições de disputar com grandes corporações espaço nos corredores do poder. Mas esses grupos, à direita e à esquerda, são os mais radicais. É a paixão, a certeza de que se está certo, que os motiva à participação.
A rede está criando certamente um mundo mais democrático. Mas é uma democracia selvagem.