quarta-feira, novembro 05, 2008

Obama: o triunfo do improvável

A noite avançava velozmente quando chegaram as primeiras notícias: Barack Hussein Obama é o 44º presidente dos EUA. John McCain reconheceu a derrota em discurso pronunciado timidamente, como o rugido leve de um velho leão ferido.
O novo presidente vai à Casa Branca, em janeiro, tendo à sua frente muito mais trabalho do que a tradicional "arrumação de casa", com a qual governantes perdem metade de seus mandatos.
Tem diante de si a maior crise financeira desde o crash de 29 e a perceptível perda de poder e influência dos EUA em um mundo cuja dinâmica o império não conseguiu sequer antever com a profundidade necessária. Embriagado com a queda do Muro de Berlim e a derrota do "socialismo real", enebriado com a jornada de ódio e sede de lucro que moveu suas tropas pelas areias do Iraque e pelas montanhas do Afganistão após 11 de Setembro, o império de Bush estava cego, trôpego, cambaleante. Nada mal se esse gigante bêbado não nos levasse junto para seu coma alcóolico. A crise dos EUA é a crise do modo de produção capitalista em sua fase especulativa, mas é em sua base que o peso é mais sentido.
Independente da análise fria que nos diz que para o Brasil nem sempre o que é bom para os Estados Unidos nos favorece, é inegável que a vitória de Obama é um fato histórico de extrema relevância.
Em Cuba, o presidente Lula deixou escapar, em um de seus comentários quase ingênuos, que se alguém sonhasse em 1998 que dez anos depois um índio seria o presidente da Bolívia, um torneiro mecânico seria o presidente do Brasil e um negro seria eleito presidente dos Estados Unidos com uma votação consagradora, "o sujeito seria internado como louco". Os mais afoitos ainda incluiriam na lista delirante a presença de Carla Bruni como primeira dama da França. O tempo da loucura está aqui. Vivemos nele e ele vive em nós.
O mundo virou de ponta-cabeça em 10 anos e a nação mais próspera e poderosa do mundo se viu, de novo, diante da necessidade de comprar sonhos. E foi assim que Obama prevaleceu sobre McCain. Seu grande desafio será entregar a mercadoria que vendeu.
"Nos discursos de campanha, Obama dirigia-se, primeiro, ao coração de suas platéias. Só depois capturava-lhes as mentes", escreveu Josias dos Santos para a Folha de S Paulo na edição de hoje.
E foi assim. E quem quer saber se ficava no ar o leve olor de falta de consistência a Obama. Numa fase em que Hillary Clinton ainda media forças pela vaga do Partido Democrata, Bill Clinton disse: “Você pode fazer campanha em poesia, mas governa em prosa”. A metáfora do marido de Hillary, um ex-presidente muito bem avaliado, resume o drama de Obama.
Josias dos Santos, em sua ótima análise, resume assim: "O triunfo nas urnas tanto pode convertê-lo em estadista como em fiasco. Por ora, sabe-se apenas que os eleitores americanos decidiram optar pela ousadia. A América fez uma concessão ao improvável. Acomodou no comando do império a mais vistosa novidade produzida pela política americana nos últimos tempos. Some-se à ascensão meteórica de Obama a cor da cútis do novo presidente e tem-se uma exata dimensão do novo."
Obama, um mulato – filho de um negro queniano com uma americana branca do Havaí - é o primeiro "homem de cor" a sentar-se na poltrona de presidente da economia mais importante do planeta. Não é pouca coisa. Isso, em si, vale sua eleição. Vale a emoção que provoca, vale o aumento no número de votantes na confusa eleição dos EUA. Quando Obama nasceu, negros não podiam conviver nos mesmos espaços com brancos sem serem objeto da ira e do espanto da maioria branca, que se julgava "superior". No sul dos Estados Unidos havia nos ônibus cadeiras reservadas para negros como hoje há as reservadas para deficientes. Agora, a mão retinta de Obama terá o poder e espera-se dele a sensatez de decidir com a razão.
Em julho passado, falando para uma multidão de cerca de 200 mil pessoas, em Berlim, Obama disse:
"Eu sei que não pareço com os americanos que já falaram aqui. A história que me trouxe aqui é improvável".
E o improvável se tornou possível, real, em um mundo onde o capital grita de dor e divide o ônus de sua doença mortal com os mais pobres, que são os que mais sofrem. Obama irrompe nesse momento como um sopro de esperança. Isso é inquestionável. Como inquestionável é a poesia presente na trajetória do sucessor de George Bush e em sua campanha eleitoral, impecável como as camisas brancas, sempre bem engomadas, que Obama vestia ao longo de toda a jornada épica de caça aos votos que, nos Estados Unidos, dura um ano inteiro.
Lembrando a silhueta de Malcolm X sobre a face negra de Obama, olhando os vídeos de sua campanha, ouvindo seus discursos fortes e serenos, reconhecendo em sua história traços do improvável, o alerta de Clinton volta a nos assaltar. Chegou a hora da prosa.
Mas mesmo nessa hora é bom admitir que Obama é um sopro do novo na velha e nefasta política dos EUA. Com ele, vem a inspiração que reconduz ao verso.
Enquanto escrevo, atrás da cortina de aço das cordas de The Edge, Bono Vox me faz companhia cantando "Beautiful Day": "está um belo dia \ não o deixe escapar".