É curiosa a tendência que cultiva a imprensa nativa de contornar os problemas ou de atribuí-los a uma origem difusa chamada "governo". Baixada a tensão produzida pelo envolvimento do goleiro do time mais popular do país no "desaparecimento" (ou na "finalização", no jargão jurídico-policial) de sua amante, agora, a temática da hora é a violência no trânsito. O aumento do número de acidentes fatais nas estradas em julho deste ano e casos de grande repercussão, como a morte por atropelamento do filho de uma conhecida atriz, colocaram na ordem do dia o debate, o que poderia ser salutar não fosse um fato singelo: a liberalidade na produçao, venda e consumo de bebida alcóolica passa incólume por essa tensão, não sendo sequer tocado quando os "especialistas" reunem-se para pensar soluções para a questão dos altos índices de acidentes fatais no trânsito, seja nas estradas ou nas ruas do país. Sabemos que o consumo de bebida alcóolica está na raiz de 75% dos acidentes de trânsito. Mas esse elemento nunca está posto no desenho que se faz no chão de asfalto quando a perícia chega ao local do sinistro.
Bebidas alcóolicas provocam acidentes, grande parte deles fatais. Mas não só. Pesquisas indicam que o consumo de álcool está ligado a incêndios, afogamentos, acidentes de trabalho (operação de máquinas), suicídios, quedas, acidentes com barcos, jet-ski, assaltos, brigas, violência doméstica e contra crianças, estupro, comportamento agressivo, nervosismo, resfriados, risco elevado de pneumonia, doenças do fígado (cirrose), pancreatite, tremor nas mãos, dormências, perda de memória, envelhecimento precoce, câncer de boca e faringe, insuficiência cardíaca, anemia, câncer de mama, úlcera gástrica, gastrite, hemorragia digestiva, deficiência de vitaminas, diarréia, má nutrição, disfunção erétil, risco de má formação do feto em gestantes e nascimento de filhos com diferentes graus de retardo mental, afora moléstias desconhecidas, que se cruzam com outras e não explicitam sua interação com o consumo de bebida.
Então, qual a razão de não progredir no congresso a proposta de repetir em nosso país a experiência do Reino Unido, onde os bares fecham às 23:00h e bebida alcóolica tem tantas sobretaxas tributárias que torna o consumo de grandes quantidades desses alteradores de percepção quase proibitivo? Além de fechar bares antes da meia-noite, na terra da Rainha uma rigorosa lei restritiva à propaganda de bebidas desestimula o consumo, especialmente entre os mais jovens enquanto no Brasil a propaganda de bebida visa alcançar e fidelizar justamente os mais jovens.
A resposta para essa inquietante questão é simples: a indústria de bebida alcóolica em nosso país é responsável por manter a mídia em patamares de lucratividade insanos. Não me dedico a coleta de dados sobre o tema, mas o investimento publicitário do setor de bebidas havia sido estimado em R$ 525 milhões no terceiro trimestre de 2007, com maior participação (R$ 377 milhões) na televisão aberta. Comparado com o ano anterior, essa evolução do investimento de bebidas na televisão aberta, por exemplo, foi de aproximadamente 105%. De lá para cá esse volume vem crescendo acima da inflação a cada ano.
Para conter os acidentes de trânsito é preciso frear a indústria da morte mantida pelos fabricantes de bebida alcóolica. É preciso Lei Seca, restrição de propaganda e elevação de tributos para compensar os custos indiretos que o alcoolismo gera. Quem vai pisar no breque?