O mito é um relato, uma descrição sempre fabulosa, do que se supõe ter acontecido no passado impreciso. Trata-se, sobretudo, de uma narrativa, um modo, segundo Platão, de expressar verdades que escapam ao raciocínio. Uma fundamentação do mundo e das coisas do mundo, no qual se aponta uma origem. Esta origem pode ser tanto de algo particular quanto do próprio cosmos. Tem por agentes, divindades. Assim, o mito situa a divindade no Mundo. Graças à ação divina, tem-se o mundo e, através dela, todas as coisas que nele existem. Desse modo, explica-se a existência dos fenômenos naturais, dos seres vivos, das sociedades humanas. Tudo está contido nessa fabulação. Os povos antigos se valiam do mito como explicação primeira do próprio cosmos. O mito do herói é, grande medida, a base de grande parte das narrativas morais desde a Grécia antiga e, hoje, da narrativa publicizada pela imprensa.
Na mitologia grega os heróis ou semideuses eram personagens posicionados no meio do caminho entre os homens e os deuses. Possuíam poderes especiais que dava a eles capacidades que superavam os atributos humanos (força, inteligência, velocidade), mas eram, como os homens, mortais. De acordo com a mitologia clássica, os heróis eram filhos de deuses com seres humanos, a fusão do céu e da terra.
Os heróis de hoje são a pálida sombra dos heróis mitológicos. O conceito de heroísmo atual reflete as areias movediças da história. Baseia-se no mérito e na humanidade, valorizando a vitória sobre o mal, enaltecendo o altruísmo, mas reservando ao humano o que é humano. As divinidades heróicas desapareceram quando deixamos de acreditar nelas, como sugere a canção de Paulinho Moska. Essa curva conceitual se iniciou na Europa. O conceito moderno de herói surgiu ali, na época do Renascimento. A Idade Média anterior não valorizava as realizações humanas ao ponto de qualificá-las como heróicas. Vivendo tolhidos pelo "pecado do homem" instituído pela moral cristã, os escolásticos católicos romanos da Europa medieval enfatizavam a vida após a morte. A grandeza, toda ela, vinha de Deus, não do homem, pelo que os verdadeiros heróis cristãos eram os mártires, os missionários e os padres preparando-se para a salvação. O Renascimento redescobriu os clássicos da literatura grega e romana como Plutarco e Cícero, e alterou esta visão.
Com o advento da mídia de massas, o heroísmo democratizou-se no século 20 e a ênfase foi para os que a história esquece. Os heróis incógnitos de todos os dias passaram a ganhar notoriedade midiática. Acreditou-se que todo ser humano era intrinsecamente heróico. Mas ser um herói numa época em que a instantaneidade dos fatos domina os meios é ainda é mais complexo. A transparência exige infalibilidade. Falhas pessoais podem por vezes lançar sombras sobre as grandes ações aos olhos do público. Poucos estados modernos no Ocidente são sociedades homogêneas, capazes de se congregarem em torno de “heróis nacionais”. Os heróis modernos - como o operário pobre que, por força própria e tenacidade, tornou-se o presidente do Brasil mais bem avaliado de todos os tempos - encontram oposição. Uma cidadania politizada raramente partilha de um padrão unificado de herói.
A grande imprensa é uma fábrica de mitos e heróis. Todos reconhecem isso. O que poucos reconhecem é o tamanho da responsabilidade que isso trás.
As redações estavam em polvorosa naquela manhã de abril. Ali, a história um tanto turba de certo Wellington Menezes de Oliveira – o atirador que matou 12 crianças no ataque a uma escola em Realengo, na Zona Oeste da cidade. Onde havia demência e tragédia, perceberam a matéria-prima suficiente para construir um mito. Tinha a opção de construir o mito do herói que salvou as crianças, o policial militar que enfrentou o assassino; a opção de destacar as vítimas como heróis inocentes da luta contra a violência ou, simplesmente, escolher enaltecer o assassino, expor seu rosto e sua história em todos os telejornais, abrir as capas das revistas, as folhas de frente dos jornais. Três opções - o herói, as vítimas ou o algoz - uma só escolha.
Sabemos hoje que os mitos podem ser tanto os olimpianos quanto aqueles personagens alçados a esta condição de superestrelas da imprensa por sua conduta criminosa, por serem assassinos seriais, por seres prostitutas que se tornaram escritoras de sucesso, por serem engenhosos fugitivos de cadeias ou mesmo anônimos vulgares humanizados pelo Big Brother.
A cena diante da imprensa, que serviria para construir um mito naquela semana de abril de 2011, estava manchada com o sangue de muitos inocentes. Diante da pauta jornalística, a escola carioca invadida por um esquizofrênico que enfrentou seus demônios internos encarnados em modestas crianças uniformizadas. Ele atirou 60 vezes. Conduzido por seus desejos, queria matar 60 vezes. Matou uma dúzia de jovens, especialmente meninas. Feriu mais de uma dezena. Findou seus dias numa escada, perfurado por projéteis como os que vitimaram crianças e virou, nos dias que se sucederiam um mito tão visível que se incorporou ao tecido social, passou a marcá-lo, a manchá-lo, a imprimí-lo com sua face, com suas palavras, com sua voz, com seu perfil cuja história, a certa altura, parece querer justificar seu ato extremo por uma infância de discriminação e por seus pesadelos internos.
No final de semana que se sucedeu ao fato as revistas semanais de maior circulação e alcance trouxeram, todas elas, a foto de Wellington de Oliveira, o assassino de crianças inocentes, estampada na capa. Era a glória de uma mente perturbada, arrancada do anonimato de onde jamais sairia não fosse a covardia de abater quem não podia se defender.
"Um louco é um louco", se diz. Tentar entender, com mente sã, as motivações de um ato insano, é uma empreitada inglória. Podemos entender a origem - fisiológica, psicológica - do distúrbio. Mas não há parâmetro para nós que possa ser medido por alguém que atravessou a fronteira da sanidade. Como entender, então, que pessoas à frente de um órgão de imprensa, compreendendo que a busca de notoriedade está na raiz de atos extremos como os de Wellington, o recompensem com a capa de sua edição de domingo? Como entender que ele tenha recebido, ao preço de vidas de crianças inocentes, a encomenda que buscava? Sim, todos sabemos que a matéria-prima da notícia é o raro, o paradoxo, o imprevisto e o caos, aparente ou verdadeiro. Todos sabem que esta rede de notícias trabalhando sempre em busca da novidade tira do público a capacidade de avaliação e compreensão das informações e, em certa medida, anula a sua capacidade de produzir signos interpretantes necessários para o acompanhamento de todas as notícias. Que os consumidores fiquem hipnotizados diante da imprensa é rotineiro. Mas como entender que a imprensa, ela própria, feita por homens e mulheres, perca a sanidade ao ponto de transformar em herói e mito o assassino frio da escola do Realengo?
Por que a capa dessas revistas não prestou uma homenagem às crianças vitimadas? Por que não enalteceu os educadores que saíram em defesa das crianças? Por que não retratou o sargento Márcio Alves, que enfrentou e, sem saber o poder bélico do contendor, o alvejou, salvando com isso sabe-se lá quantas vidas?
O assassino não tinha uma motivação racional. Não procurava difundir uma causa, não queria libertar reféns, não estava a se vingar de bulling. Ele só queria desesperadamente sair do anonimato e enfrentar as vozes que o impeliam à ação. Os vídeos que deixou gravado em seu computador revelam isso. Quantos outros como ele seguirão esse exemplo?
O jornalista Arbex Jr fala, ao se referir-se à fabricação da notícia, em estratégia de sedução: "um dos desafios enfrentados diariamente pelos estrategistas da mídia consiste, precisamente, na elaboração de estratégias de sedução do telespectador/ leitor, operando em um inevitável espaço de ambigüidade do fato comunicativo. Trata-se de transformar a ambigüidade em seu oposto – o consenso aparente, imposto, fabricado por técnicas de propaganda".
É disso que se trata. A face nua do assassino seduz, vende revistas. Seu olhar vazio denota mistério. Não se trata, então, de fazer o certo, de educar, de exercer a função pedagógica que a mídia democrática deveria ter. Trata-se de contar os trocados. É o cobre em troca de sangue, como se dizia no período medieval.
Wellington, o insano, imolou-se. Vestiu seu uniforme de combate para matar crianças a sangue frio. Ele criou um personagem e o encarnou até o fim. Só a fama e a esquizofrenia - qual a fronteira entre elas? - permitem a criação dessa espécie de personagem permanente. Se o ídolo precisa ter certas características que o distanciam dos simples mortais, se ele precisa ser alguém com habilidades extraordinárias, como enquadrar Wellington na categoria do mito?
Ocorre que vivemos a era da massificação do mito. Um bom exemplo disso são os reality shows, onde as câmeras de TV transformam em celebridades personagens comuns e sem importância, dando relevo às mais simples rotinas diárias, como dormir, comer, escovar os dentes, cantar, abraçar coqueiros ou decorar a casa. O nome Big Brother foi apropriado do romance “1984”, de George Orwell, que retratava um estado totalitário onde cada cidadão era vigiado através um aparelho de TV pelo qual interagia com o grande ditador, que se apresentava como "o Grande Irmão".
Arbex Jr fala da existência de um jogo narcísico nestes processos de identificação dos massa media: "Há uma elevada dose de narcisismo nesses processos de identificação. Mesmo inconscientemente, escolho os aspectos que merecem ser iluminados na composição de tal ou qual personagem, os aspectos que melhor me descrevam para mim mesmo e para os outros de acordo com aquilo que penso a meu respeito. Ou, ao contrário, escolho a figura que deve ser odiada por se opor à minha imagem ideal".
No caso de Realengo, a imprensa, essa fábrica de mitos e de narrativas heróicas, optou por dar ao assassino a fama pela qual ele viveu, matou e morreu.
O preço? A vida e a dor de muitos inocentes.