quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Gramsci e o conceito de partido

A ação política (no sentido estrito) é necessária para que se possa falar de partido "político"?  No mundo moderno, pode-se observar que, em numerosos países, os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidades da luta ou por outras razões, se dividiram em frações, cada uma das quais toma o nome de "partido" e mesmo de partido independente.  É por isso que o Estado Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma dessas frações, mas opera como se fosse uma força dirigente completamente independente, superior aos partidos e às vezes considerada mesmo como tal pelo público.  Essa função, pode-se estudá-la com maior precisão se se parte do ponto de vista de um jornal. (ou um grupo de jornais) , uma revista (ou grupo de revistas); estes também são "partidos" ou "frações de partidos" ou "função de determinados partidos".  Pense-se na função do Times na Inglaterra, a que tem o Corriere de la Sera na Itália, e também na função do que se chama de "imprensa de informação" , que se diz "apolítica", e mesmo no noticiário esportivo e no técnico.  De resto, o fenômeno oferece aspectos interessantes  nos países onde existe um partido único e totalitário de governo: porque tal partido não tem mais funções francamente políticas, mas apenas técnicas de propaganda, de polícia, de influência moral e cultural.  A função política é indireta: porque, se não existem outros partidos legais, existem sempre outros partidos de fato ou tendências incontroláveis legalmente, contra os quais se polemiza e luta-se como num jogo de cabra-cega. 
De qualquer modo, é certo que em tais partidos as funções culturais predominam, dando lugar a uma linguagem política de jargão: isto é, as questões políticas se revestem de formas culturais e como tais tornam-se insolúveis.
Mas há um partido tradicional que tem um caráter essencialmente "indireto", isto é, apresenta-se explicitamente como puramente "educativo" (lucus1 etc.), moralista, cultural (sic):  assim, a dita ação direta (terrorista) é concebida como "propaganda" pelo exemplo, do que se pode ainda reforçar o juízo de que o movimento libertário não é autônomo, mas vive à margem de ourtros partidos, "para educá-los", e se pode falar de um "libertarismo" inerente a todo partido orgânico.  (Que são os "libertários intelectuais ou cerebrais" senão um aspecto de tal "marginalismo" correspondente aos grandes partidos dos grupos sociais dominantes?)  A própria "seita dos economistas"2 era um aspecto histórico desse fenômeno.
Apresentam-se, portanto, duas formas de "partido" que parecem fazer abstração (como tais) da ação política imediata.: o constituído por uma elite de homens de cultura, que tem a função de dirigir do ponto de vista da cultura, da ideologia em geral, um grande movimento dos partidos afins (que são na realidade frações de um extenso partido orgânico) e, no período mais recente, partido não de elite, mas de massa, que como massa não tem outra função política do que a de uma fidelidade genérica, de tipo militar, a um centro político visível ou invisível (frequentemente o centro visível é o mecanismo de comando da força que não deseja mostrar-se à plena luz, mas operar só indiretamente por interposta pessoa e por "interposta ideologia").  A massa é simplesmente de "manobra" e vem "ocupada" com predicados morais, com preocupações sentimentais e com mitos messiânicos de esperança em uma idade fabulosa na qual todas as contradições e misérias presentes serão automaticamente resolvidas e sanadas3.
1933
[Cadernos do cárcere / Notas sobre Maquiavel, a política e o príncipe moderno / 1932-1933]
Antonio Gramsci (1891-1937)


Notas:
1 Palavra latina significando "bosque sagrado".  Não se sabe a que Gramsci faz alusão.  Talvez a alguma organização com esse nome.
2 Ver a nota Alcuni aspetti teorici e practici dell'"economismo" [Alguns aspectos teóricos e práticos do "economismo"] nos Cadernos do Cárcere de Gramsci.
3 O segundo tipo de partido corresponde ao fascismo.  O primeiro tipo de partido é provavelmente uma referência ao papel de Croce: "o partido como ideologia em geral, superior aos diversos agrupamentos mais imediatos.  Na realidade, o modo de ser do partido liberal italiano após 1876 foi de se apresentar ao país como 'uma ordem dispersada' de frações e de grupos nacionais e regionais.  As frações do liberalismo político eram tanto o catolicismo liberal dos populares quanto o nacionalismo (Croce colaborou na Politica de A.  Rocco e F. Coppola), tanto as Uniões monarquistas quanto o partido republicano e uma grande parte do socialismo, tanto os radicais democratas quanto os conservadores, tanto Sonnino, Salamandra quanto Giolitti, Orlando, Nitti e Cie.  Croce foi o teórico de todos esses grupos e grupúsculos com coquetismos e cacoetes em comum; ele foi o chefe de um escritório central de propaganda, do qual todos esses grupos se serviam e tiravam benefícios, foi o líder nacional dos movimentos culturais que nasciam para renovar as antigas formas políticas".
Fonte: GRAMSCI, Antonio.  Note sul Machiavelli sulla politica e sullo Stato moderno.  Editori Riuniti, p.25-26.
Fonte secundária: Gramsci dans le texte. Paris: Editions sociales, 1975, p. 453-455