quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Sem remédio

Marx dizia que a burocracia ocupa-se, fundamentalmente, em criar as condições de sua própria sobrevivência. Isso quer dizer que, em nome dessa sobrevivência, às vezes atropela-se até mesmo o bom senso, desde que uma nova atribuição e um novo carimbo sejam criados para justificar a vida gris e desinteressante da burocracia.
Lembrei dessa lição da juventude ao me deparar com a totalmente lunática resolução da Anvisa, que proibe que as farmácias deixem expostos remédios de uso livre (cuja prescrição não exija receita), como analgésicos e vitaminas nas gôndolas das drogarias do país.
O que o público ganha com isso? Rigorosamente nada. Mas em compensação a burocracia da saúde pública justifica sua existência, já que terá que exercer o controle da execução da dita resolução, criada apenas para dar a si mesma uma ocupação e para dar aos advogados das associações de farmácias uma renda suplementar.
Se você viveu, como eu, o tempo em que era preciso ir ao balcão até mesmo para pedir uma Cibalena, sabe que essa medida vai gerar filas em duplicidade; uma para pedir a medicação que sequer carece de receita e outra para pagar o produto; sabe também que quem precisa comprar remédios com receita, terá que enfrentar filas maiores, já que terá a concorrência de pessoas que estão ali apenas para comprar uma caixa de vitamina C.
Essas questões, óbvias e ululantes, passaram ao largo quando da redação do texto que se propõe a "defender os cidadãos" contra "os abusos" das redes de farmácias, que se transformaram "em supermercados da saúde", substituindo "o conhecimento médico e a rede pública de saúde" pela auto-medicação. 
Bobagem. Na verdade, a resolução parte de uma crença ao mesmo tempo comum e estranha: a de que todo mundo é imbecil e que, apenas por ver exposto numa cesta um envelope de Lactopurga, o consumidor que precisa de um analgésico, por exemplo, irá comprar o laxante digestivo por indução, ou seja, irá comprar um produto que não precisa para um mal que não o acomete. A tutela do estado, que deve acontecer em questões relevantes, é levada assim ao paroxismo, invadindo todas as áreas da vida privada, incluindo aquela onde o Lactopurga atua.
Melhor faria a Anvisa se debatesse questões relevantes, como a discriminalização da maconha ou a legalização da venda de drogas proscritas, cuja proibição tornou-se, ao longo do século XX, o indutor principal do tráfego, da corrupção e da criminalidade que se organizam em torno dela.