A revista Carta Capital, uma espécie de reserva de inteligência na imprensa acéfala do país, reporta-se a um tema perigosamente negligenciado nos debates sobre democracia e comunicação: a expansão do controle de estações de rádios e emissoras de tevê por seitas religiosas.
Esse fato deveria provocar temor e produzir debate entre os cidadãos de bem, mas encontra uma sociedade entorpecida pelo discurso tolo que entoam 24 horas por dia, inclusive no rádio e na tevê, essas corporações capitalistas - que negociam símbolos e atuam no mercado do imaginário da população para acumular capital material e político.
Pegue seu controle remoto e faça um teste.
Para cada canal noticioso no ar hoje, há quatro canais religiosos, bombardeando a população com mensagens velhas, óbvias e recorrentes que culminam, invariavelmente, com um 0800 para aporte financeiro, uma espécie de “compre djá” do paraíso e da vida eterna.
Como cidadão, sou totalmente favorável à liberdade de crença – todo cidadão tem direito de crer no que quiser e professar essa fé de maneira aberta - mas sou totalmente contrário à organização de grupos de negócios religiosos, na mídia ou fora dela, assim como na constituição de agremiações políticas sectárias, pertencentes a um grupo religioso.
Democracia é pluralidade e é incompatível com o pensamento único e a tentativa de impô-lo aos demais, que se constitui sempre no caminho mais curto para a intolerância e para o totalitarismo.
O monopólio do pensamento e da política por grupos religiosos é um modelo experimentado pela humanidade - e rotundamente fracassado. Na idade Média o poder absoluto da igreja resultou não apenas no atraso científico, mas na intolerância mais brutal, com a prática da tortura e da matança de "infiéis". Galileu Galilei e Giordano Bruno são dois exemplos de inteligências científicas submetidas a esse torniquete de imbecilidades. Religiões milenares, como o hinduísmo ou as crenças de indígenas do Novo Mundo - politeístas - eram consideradas "pagãs" e, portanto, passíveis de condenação e segregação.
Ideologicamente, o desejo do retorno a essa época em que as religiões imperavam no campo político e havia uma fusão entre Igreja e Estado está na raíz no avanço político dos grupos religiosos; economicamente, essa empreitada focada nos meios de comunicação quer produzir fortunas que serão, é claro, apropriadas individualmente, gerando o paraíso imediato para os controladores dessas seitas. Política e negócios, ou seja, o jogo do poder, bem terreno, é que está na base dessa suposta disputa pela supremacia no Céu e salvação de almas.
Nos demais cidadãos não pode haver saudosismo de um período da história humana em que a prática mais comum para converter e punir era a tortura e a difusão do medo.
Naquele tempo, além de aparelhos mais sofisticados como a propaganda, a arquitetura e a persuasão visual, utilizavam-se também instrumentos mais simples de convencimento e conversão, como tesouras, alicates, garras metálicas que destroçavam seios e mutilavam órgãos genitais, chicotes, instrumentos de carpintaria adaptados, ou apenas barras aquecidas de ferro.
No caso específico da Santa Inquisição, os acusados eram, geralmente, torturados até que admitissem ligações com Satã e práticas obscenas. Se um acusado denunciasse outras pessoas, poderia ter uma execução menos cruel, gerando com isso uma sociedade de dedos-duros, que usavam as divergências pessoais ou políticas como motivação para acusar parentes, vizinhos e desafetos.
Em alguns países onde o fundamentalismo religioso ganhou o poder político essas práticas seguem sendo diariamente levadas a cabo para punir “infiéis”, ou seja, dissidentes.
O futuro da democracia é incompatível com o fundamentalismo religioso, baseado na verdade única e na separação da sociedade em dois grupos sociais distintos e com direitos diferenciados: os fiéis e os infiéis.
A democratização dos meios de comunicação, por sua vez, é incompatível com o loteamento de canais de rádio e tevê entre organizações religiosas, ainda que em nome de um precário “direito de difusão de idéias” e do suposto fim pacífico dessas organizações.
"Nunca grupos religiosos, evangélicos e católicos, controlaram tantas rádios e tevês. Nem empreenderam ofensiva tão organizada para ampliar seu poder político", diz a matéria da Carta, assinada por Gilberto Nascimento, que exemplifica dizendo que o SBT perdeu, desde 1995, 18 emissoras para grupos religiosos. A matéria mostra que o objetivo dessa cruzada é a ampliação do poder político: a Igreja Mundial, uma espécie de Universal "do B", pretende lançar candidatos em todas as capitais, enquanto a Canção Nova, a mais forte vertente carismática, aposta não em fazer um senador, mas em fazer "uma bancada" no senado.
Ao mesmo tempo, centrais sindicais e organizações populares continuam apartadas de meios de comunicação de massas.
A Central Única dos Trabalhadores, por exemplo, tem um pedido de canal de TV que está amarelando nas gavetas do Ministério das Comunicações há mais de uma década e meia.