“No caminho” é uma série em formato de documentário exibida no canal Multishow.
Bem cortado, com trilha primorosa, imagens transbordantes de cor e edição caprichada, "No caminho" mostra a jornada de uma jornalista brasileira à Índia, em busca, segundo ela, “de si mesma” e de sua “espiritualidade”.
A sinopse da emissora é menos intensa: “Numa viagem mística, Susanna Queiroz vai mostrar uma Índia diferente. Entre templos e personagens comoventes, Susanna vai despertar a curiosidade das pessoas com esse país misterioso”.
A expressão “misterioso” revela a sensibilidade do redator da sinopse para a complexidade do tema, mas o que se vê no decorrer do programa tem mais a ver com a busca do "eu interior" da apresentadora, que insiste em mostrar os “mistérios da Índia” transmutados em encantamentos que se desdobram em santidade e eternidade, como se ali fosse o lugar único do encontro pleno de seres humanos e entidades espirituais atemporais. Olhos fechados e gestos contritos ajudam a dramatizar ainda mais a recepção de todos aqueles estranhamentos. O deslumbramento de Queiroz é lisérgico.
Viajando em um trem precário riscando uma paisagem árida, extremamente pobre e sem qualquer atrativo no interior do país das castas, ela olha para a câmera e, com a expressa de uma adolescente deslumbrada, ataca: “Eu nunca vi paisagem tão linda”. Poderia reconsiderar se fosse a Alter do Chão, em Santarém, no Oeste do Pará.
“No caminho”, Queiroz entrega-se aos devaneios como um típico devoto hindu. Depois de dar flores para uma vaca comer, entrar em uma fila quilométrica apenas para ver de longe um “guru”, sentar-se no chão aonde ratos urinam e banhar-se nas águas poluídas e nada aromáticas do rio Ganges, Queiroz está apta a fazer parte do exército de personagens que, desde George Harrison, o Beatle discreto, endeusaram a Índia simplesmente porque ela é diferente de tudo o que já viram.
Mas ser diferente não significa necessariamente ser melhor.
A Índia não é o lugar da paz espiritual e da elevação, mas o reduto do caos social e do atraso.
As religiões dominam o país e têm um papel preponderante na conduta social, na perpetuação da divisão de classes e castas e na condução política, onde os deuses, como os homens, são sempre discricionários. Hindus representam 80,5%; muçulmanos 13,4%; cristãos 2,3%, sikhs 1,9%, outros1,9%, de acordo com o censo de 2001. Há 14 línguas oficiais. As principais são híndi, urdu e bengali. O inglês tem presença marcante por causa da presença longa dos súditos da rainha em território indiano, mas não é oficial graças às cicatrizes deixadas pelo colonialismo britânico.
O país que alguns cultuam como o lugar do encontro cabal do ser humano com sua plenitude espiritual é, na verdade, o escaninho da miséria, do atraso e da opressão de classe, ocupando a posição 132 entre 179 países no Índice de Desenvolvimento Humano. O Brasil que já esteve ladeando a Índia, hoje está em 70º.
O índice de mortalidade infantil entre os 20% mais pobres da população indiana é três vezes maior do que entre a parcela mais rica. E existem disparidades gritantes entre os Estados do norte do país, que fazem parte do chamado "cinturão da pobreza", como Uttar Pradesh e Bihar, e os mais bem sucedidos, como Tamil Nadu e Kerala. Com uma população maior do que a da Nigéria, o Estado de Uttar Pradesh imuniza apenas uma em cada cinco crianças contra as principais doenças infantis.
O ataque à pobreza e à ignorância tem obstáculos objetivos. O analfabetismo atinge 34,8% da população acima de 15 anos e 28,5% sobrevivem abaixo da linha de pobreza, ganhando US$ 1,25 por dia.
Mas o que dizer do crescimento econômico indiano tão propalado em nossa imprensa econômica?
Há mais de duas décadas a Índia se encontra perto do topo da superliga mundial do crescimento. O "índice hindu de crescimento" vagaroso que caracterizou as três primeiras décadas após a independência está ficando cada vez mais para trás na memória. Novos e dinâmicos setores econômicos surgiram no país, mais visivelmente nos centros florescentes de alta tecnologia de Bangalore e Hyderabad. E os investimentos externos, embora ainda sejam pequenos quando comparados aos que são feitos na China, aumentaram de US$ 1 bilhão por ano em meados da década de 1990 para US$ 5 bilhões neste ano.
Há mais de duas décadas a Índia se encontra perto do topo da superliga mundial do crescimento. O "índice hindu de crescimento" vagaroso que caracterizou as três primeiras décadas após a independência está ficando cada vez mais para trás na memória. Novos e dinâmicos setores econômicos surgiram no país, mais visivelmente nos centros florescentes de alta tecnologia de Bangalore e Hyderabad. E os investimentos externos, embora ainda sejam pequenos quando comparados aos que são feitos na China, aumentaram de US$ 1 bilhão por ano em meados da década de 1990 para US$ 5 bilhões neste ano.
Mas riqueza e crescimento industrial não querem dizer distribuição de riqueza e do resultado desse crescimento industrial. Na Índia, pode significar apenas que os ricos se tornem mais ricos.
Enquanto no Brasil a renda dos mais pobres cresceu sete vezes mais rápido do que a renda dos mais ricos desde 2001, na Índia em uma década a renda dos mais pobres cresceu apenas duas vezes, mesmo com um crescimento econômico superior, nominalmente, ao nosso.
Por enquanto, no milenar paraíso de “No caminho”, o grande "mistério" é tentar entender a razão de tamanha grandeza espiritual não ajudar a superar a barbárie material, a miséria absoluta e a ignorância.
Enquanto no Brasil a renda dos mais pobres cresceu sete vezes mais rápido do que a renda dos mais ricos desde 2001, na Índia em uma década a renda dos mais pobres cresceu apenas duas vezes, mesmo com um crescimento econômico superior, nominalmente, ao nosso.
Por enquanto, no milenar paraíso de “No caminho”, o grande "mistério" é tentar entender a razão de tamanha grandeza espiritual não ajudar a superar a barbárie material, a miséria absoluta e a ignorância.