A desindustrialização empurrou a esquerda para fora das grandes cidades, sustenta o sociólogo Francisco de Oliveira, 74, professor titular do Departamento de Sociologia da USP. Segundo ele, a fuga das indústrias da capital paulista, por exemplo, converteu a cidade num pólo de serviços com um setor informal muito extenso, cujos integrantes não se identificam com o PT: "Em geral eles votam na direita devido ao imediatismo. É gente que quer receber benefícios imediatos, sem esperar por transformações estruturais". Crítico, Oliveira vê o Bolsa Família como uma "política conformista" que reflete o predomínio desse "exército informal que representa mais de 50% da força de trabalho".
O sociólogo sustenta ainda que, ao chegar ao poder, "o PT foi engolido pelo atraso", pois trocou uma política de classe, que buscava uma hegemonia intelectual, por uma política de combate à pobreza, que busca a maioria com atrativos materiais.
A entrevista é de Maurício Puls e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 19 de outubro de 2008 talvez não seja expositora de posições unânimes, mas serve como instigante instrumentos de debate nesse momento pós-eleitoral.
Eis a entrevista.
Em novembro de 2004, o sr. publicou um artigo na Folha em que dizia que Marta Suplicy foi derrotada pelo governo Lula, pois sua política econômica era indefensável. Hoje Lula tem mais de 50% de aprovação na cidade de São Paulo. Como o sr. explica a rejeição a Marta? A criação das taxas? As políticas sociais do PT? Críticas moralistas?
Um pouco de tudo isso. Em primeiro lugar, naquela época o ataque da mídia ao governo Lula era muito intenso, e Lula não transferiu votos para Marta, transferiu a carga negativa. Agora a situação é a seguinte: a administração de Kassab está muito fresca na memória, enquanto a de Marta já tem quase quatro anos de distância. Isso hoje é muito importante devido à imediaticidade da mídia. É ela que faz a nossa consciência: é uma presentificação absoluta. A distância da administração da Marta esbarra na imediaticidade das avaliações positivas de Kassab. O fato de a avaliação do governo federal ser positiva na cidade de São Paulo não dissolve essa distância da Marta. E São Paulo é uma cidade bastante conservadora. Bastante conservadora. Se você retoma a história brasileira, o populismo paulista sempre foi de direita: Adhemar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf.
Ignácio Rangel dizia que o latifúndio gaúcho - Getúlio Vargas, João Goulart - conseguiu representar politicamente a indústria nacional, o que deu origem a um populismo de esquerda, progressista. Mas isso não aconteceu em São Paulo.
Isso nunca aconteceu. Mas não é só isso. Na verdade o que é importante no Rio Grande do Sul é a pequena propriedade, não é o latifúndio: o latifúndio enche nossas mentes, mas não forma... As ideologias populistas nascem no Rio Grande do Sul, mas é importante não esquecer que o Estado conheceu um positivismo muito especial, que é o que influi na legislação trabalhista. Vargas era positivista, a moçada formada nas escolas militares era positivista. Não é a toa que a divisa da bandeira brasileira é "Ordem e Progresso". E São Paulo não teve essa formação.
Mas por que a direita é especialmente forte em São Paulo? Devido à centralidade econômica da cidade, sede de grandes empresas, bancos, associações empresariais?
De fato, a centralidade econômica de São Paulo leva a cidade para a direita. Não é tautológico, mas é um fato.
Mas o PT continua sendo muito votado na periferia da cidade e nos demais municípios da região metropolitana. O sr. acha que a esquerda foi expulsa para fora da cidade - para a região metropolitana?
Foi, é verdade. Esse é um fenômeno político da maior importância. As indústrias saíram de São Paulo. São Paulo não é mais uma cidade proletária: é uma cidade de serviços e de um setor informal imenso, cuja identificação de classe é muito ambígua, muito perpassada pelo fenômeno da sobrevivência. É uma situação de classe muito difícil. São Paulo não é mais do proletariado clássico. Moro num bairro, a Vila Romana, que antigamente tinha várias indústrias. Hoje não tem mais nenhuma, todas foram para outros municípios.
Inclusive é uma área de forte investimento imobiliário.
Forte, muito forte. Não é uma zona rica, comparada a Higienópolis, mas é uma zona de investimentos imobiliários muito altos. E aqui você tinha a Matarazzo, a Saturnia, a Melhoramentos - hoje aqui só ficou o escritório -, a Parmalat... Era uma zona de fábricas, e hoje não tem mais nenhuma. Isso aconteceu com a cidade como um todo. A cidade se desproletarizou na forma clássica e ganhou um enorme exército de trabalhadores informais....
Que em geral não votam na esquerda...
Em geral eles votam na direita devido ao imediatismo. É gente que quer benefícios imediatos, sem esperar por transformações estruturais.
Apesar de sua provável derrota em São Paulo, o PT continua sendo o partido que mais cresceu no país. Em 2004 o sr. escreveu que isso mostrava o envelhecimento de um partido nascido para reformar o país. O sr. ainda mantém essa opinião: o PT foi engolido pelo atraso ou foi o atraso que se modernizou?
Eu acho que o PT, como força transformadora, foi engolido pelo atraso. Qual é a modernização que existe aí? É uma modernização de políticas sociais que são políticas de ajustamento, não são políticas sociais transformadoras - elas se ajustam à realidade. O Bolsa Família é uma política de ajuste, uma política conformista. E isso reflete essa situação um tanto ambígua de uma classe que não é classe, desse enorme exército informal que representa mais de 50% da força de trabalho. Então, o PT foi engolido pelo atraso. A modernização das políticas sociais é uma regressão da classe para a pobreza, enquanto o movimento histórico vai da pobreza para a classe. A extensão das políticas sociais focais é uma regressão da classe para a pobreza: elas são políticas para os pobres.
Os partidos social-democratas de tipo clássico se baseavam em seções territoriais, os núcleos de base. Hoje os núcleos do PT praticamente desapareceram. Essa transformação reflete a conversão de um "partido dos trabalhadores" em um "partido dos pobres"? O PT não é mais um partido social-democrata?
Não, não é. Isso reflete em parte essa mudança e, em parte, é um reflexo da chegada ao poder. Você se profissionaliza porque a gestão do Estado exige a profissionalização. Não é um Estado qualquer: é um Estado capitalista, todo permeado por relações patrimonialistas, mas na maior parte dos casos você tem que gerir dinheiro. E dinheiro não se gere passando a mão na cabeça. O partido profissionalizou-se e burocratizou-se no sentido weberiano - ele tem de tornar a gestão previsível, e por isso se profissionaliza. Isso é em parte o efeito da chegada ao poder, e em parte o efeito da regressão da classe para a pobreza.
Mas o PT ainda tem um vínculo razoavelmente estreito com os sindicatos. O sr. acha que ele se parece hoje mais com o Partido Democrata norte-americano, que ainda está ligado a uma central como a AFL-CIO, do que com os social-democratas europeus, que antes eram estruturados a partir dos sindicatos?
Não, não é mais o modelo europeu. É mais próximo realmente do modelo norte-americano, com algumas particularidades que a legislação brasileira conferiu, devido ao fato de que a influência do Estado na formação da economia levou à formação desses fundos estatais, que eram mecanismos de acumulação, e que estão na maior parte dos casos sob o controle de sindicalistas. É uma transformação da classe.
É aquilo que o sr. tinha descrito no "Ornitorrinco". O sr. acha que o partido hoje é controlado por uma nova classe social?
Eu acho. É uma expressão forte, porque os sociólogos têm muito medo de falar em classe social. Mas é uma nova fração de classe que tem um papel muito importante hoje.
O sr. fala de uma aproximação entre PT e PSDB. Mas o que opõe os dois partidos nas eleições? Qual é a fratura que divide os dois?
A fratura é parecida com a que existe nos Estados Unidos: embora democratas possam ser tão ricos quanto republicanos, essa fratura permanece nos EUA devido a origens históricas diferentes. Isso tem peso. Quem fez a paz no Vietnã foi um conservador. Os democratas não ousavam dar nenhum passo no Vietnã porque apareceriam como traidores. Origens históricas diferentes continuam a pesar, e o fato de que, a partir dessas origens diferentes, eles se inscreveram junto ao eleitorado como alternativas. Mas a aproximação entre eles é tão grande que em Minas tentou-se essa façanha, de eleger um tertius que representasse os dois partidos, PT e PSDB. Essa é a tendência. Mas não ocorrerá de forma absoluta devido a essas raízes históricas diferentes. Mas as diferenças reais são muito pequenas.
Mas, se há uma identidade absoluta, não haveria nenhum fundamento para uma escolha do eleitor. Existiria alguma coisa substantiva além das raízes históricas?
Existe. Ainda há diferenças. Mas do ponto de vista das políticas decisivas elas são quase irreais - as diferenças reais quanto ao rumo da política nacional são quase irrelevantes. Mas eles jamais vão se unir, porque em política a soma não é maior do que as partes, como o caso de Minas revelou: juntaram duas forças que aparentemente iam aplastar qualquer outra. E não resultou.