Um dia no princípio de Maio, em plena Primavera, faz calor.
(...)
Subitamente, Émilie surge à entrada da cozinha, muito bem vestida com um terno cinzento claro de mangas transparentes e traz um cinto largo, bordado. Dirige-se a Alexandre com voz grave.
ÉMILIE: Quando acabares de beber o chocolate, gostava de falar contigo. (...) Vamos os dois à biblioteca para cumprimentar alguém que veio visitar-nos. (Silêncio) É alguém que te quer falar. (Silêncio) Não é preciso chorares.
ALEXANDRE: Mas o que é que eu fiz?
ÉMILIE: Sabes melhor que ninguém. Anda, vamos à biblioteca.
A mãe levanta-se, e pega no filho pela mão. Dirigem-se os dois à biblioteca. Ali encontra o bispo que folheia um livro do pai, e que imediatamente olha e sorri para os que entram. Visto da perspectiva de Alexandre, Edvard Vergérus é impressionante: alto, ombros largos, rosto comprido com mossas e envolto numa cabeleira cinzenta clara, barba, e olhos dum azul intenso. Veste uma casaca de pastor e a sua cruz de ouro cintila no tecido escuro. Estende uma mão a Alexandre. Alexandre faz-lhe uma vénia profunda. A mãe senta-se no enorme canapé de couro.
EDVARD VERGÉRUS: Bom-dia, Alexandre.
ALEXANDRE: Bom-dia.
EDVARD: Tu e eu já nos encontramos. (Silêncio) Em circunstâncias dolorosas. (Silêncio) Quando enterrei o teu pai.
ALEXANDRE: Sim.
EDVARD: A partir daí a tua mãe, que não tem apoio masculino, já me consultou algumas vezes para me fazer saber das suas preocupações. O que é perfeitamente natural. Sou um amigo íntimo da tua avó e o pastor desta paróquia.
ÉMILIE: Durante este período difícil, Monsenhor foi muito bom para mim e não sei como conseguiria aguentar sem a sua ajuda.
EDVARD: Também falamos de ti, pequeno.
O bispo está sentado no sofá em frente da mesa da biblioteca, puxou dum estojo de cabedal e retirou dele um cachimbo e um saquinho cheio de tabaco. Enche cuidadosamente o cachimbo e acende-o nas costas do sofá e observa Alexandre com os olhos a brilhar, dum azul intenso.
ÉMILIE: Já disse ao senhor Bispo como me sinto orgulhosa e feliz com os meus filhos queridos.
EDVARD: Ouvi dizer que tu e as tuas irmãs vão bem na escola. Que sois atentos, trabalhadores e tiveram boas notas pelo Natal. É assim, Alexandre?
ALEXANDRE (murmura): É.
EDVARD: Não precisas de ter medo. Sou teu amigo e só te quero bem. Acreditas ou não?
ALEXANDRE: (quase a chorar): Acredito.
EDVARD: Mas trabalhar bem e ter boas notas não é tudo na vida.
ÉMILIE: Alexandre, assoa-te.
Alexandre assoa-se.
ÉMILIE: Tens o lenço todo sujo! A Maj não te deu hoje um lenço limpo?
ALEXANDRE: Deu. (Assoa-se e murmura) Sujidade de merda.
EDVARD (que é surdo dum ouvido): Como te dizia, trabalhar bem e ter boas notas não é tudo na vida.
ÉMILIE: Ouve o que diz Monsenhor, Alexandre.
EDVARD: Mas ele está a ouvir-me. Não estás, Alexandre? E estás um pouco apreensivo com o que vou dizer, não é?
Alexandre resmunga.
EDVARD: Estás a crescer, Alexandre. Por isso vou falar contigo como um adulto falaria com outro adulto. És capaz de me dizer, és capaz de me explicar o que é mentira e o que é verdade? És capaz?
Alexandre continua calado.
EDVARD: Talvez penses que é uma pergunta estúpida, e de facto é. Estava apenas a brincar. Tu sabes muito bem o que é mentira e o que é verdade.
ALEXANDRE: Sei.
EDVARD: Muito bem, meu rapaz, muito bem. E também sabes por que se mente.
ALEXANDRE: Porque não se quer dizer a verdade.
EDVARD: Essa é uma resposta astuta, meu caro. Mas não te safas assim tão facilmente. Por isso te pergunto: Por que é que não se quer dizer a verdade?
ALEXANDRE: Não sei.
Alexandre olha para o chão, sente o esqueleto a liquefazer-se lentamente, a abandoná-lo pela planta dos pés e a espalhar-se sobre o tapete oriental da biblioteca. O bispo sorri sozinho, mergulha um comprido dedo amarelado no fornilho do cachimbo para acamar o tabaco. Émilie, com ar desalentado, olha para o filho recalcitrante.
EDVARD: Temos muito tempo, Alexandre e a tua resposta interessa-me de tal maneira que vou esperar por ela o tempo que for preciso. Não acreditas, mas é verdade.
ALEXANDRE: Mente-se para se conseguir ua vantagem.
EDVARD: Bem respondido, meu rapaz. Bem e de forma concisa. Agora vou continuar com o meu interrogatório e perdoa-me se te vou fazer algumas perguntas um pouco mais pessoais. Podes contar-nos, a mim e à tua mãe, por que mentiste na escola?
ALEXANDRE: O quê?
ÉMILIE: O teu professor escreveu-me a dizer que andas a espalhar na aula as mais incríveis mentiras.
ALEXANDRE: O quê?
ÉMILIE: Vais negar... que andaste a dizer aos teus colegas que... que eu te tinha vendido a um circo ambulante (lê a carta) e que no fim deste trimestre as pessoas do circo te vêm cá buscar? Que te vão ensinar a ser acrobata e a montar a cavalo com uma cigana da tua idade chamada Tamara.
Alexandre fica calado, vencido.
EDVARD: Como deves compreender, a tua mãe sentiu receio e pena quando leu esta carta. Não sabia o que fazer. Eu propus-lhe discutir contigo este assunto tão aborrecido, por isso aqui estou.
ÉMILIE: Devias ficar reconhecido por Monsenhor perder o seu tempo por tua causa, Alexandre. Não achas?
Alexandre baixa a cabeçe.
EDVARD: Dizíamos há pouco que aquele que mente quer, graças à sua mentira, obter uma vantagem. Agora, segundo toda a lógica, eu pergunto-te: que vantagem achavas tu que obtinhas ao dizeres que a tua mãe te tinha vendido a um circo?
ALEXANDRE: Não sei.
EDVARD (sorrindo): Acho que sabes muito bem, mas que tens vergonha de dizer. Tens vergonha, é isso? Está bem, meu caro. Está muito bem. Isso só demonstra que no futuro evitarás deixar-te levar por tais fantasias. Agora vais pedir perdão à tua mãe pelo desgosto e pela inquietação que lhe provocaste. Vá, pede perdão à tua mãe. (Silêncio) Estás a ouvir o que te digo, Alexandre?
Alexandre mantém os ombros crispados e a cabeça baixa, não chora mais, cerra os punhos e acaba por se dirigir à mãe.
ALEXANDRE: Mamã, peço perdão por ter mentido e prometo não voltar a fazê-lo.
A mãe beija um Alexandre completamente petrificado e puxa-o para si, sentando-o nos joelhos. Alexandre deixa-se ficar assim, inerte, como uma marioneta sem fios.
EDVARD: Está bem, Alexandre. O assunto está resolvido e não vamos falar mais nisto. Sabes que a imaginação é algo de magnífico, é uma força enorme, um dom de Deus. Entre os homens, são os grandes artistas, os poetas, os músicos, que se servem dela.
O bispo pôs-se de pé e dá pancadinhas na cabeça de Alexandre com a mão enorme e ossuda.
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Ingmar Bergman, Fanny & Alexandre; Excertos.