quarta-feira, setembro 23, 2009

Aprendendo a ver e a escrever com Bergman

Um dia no princípio de Maio, em plena Primavera, faz calor.

(...)

Subitamente, Émilie surge à entrada da cozinha, muito bem vestida com um terno cinzento claro de mangas transparentes e traz um cinto largo, bordado. Dirige-se a Alexandre com voz grave.

ÉMILIE: Quando acabares de beber o chocolate, gostava de falar contigo. (...) Vamos os dois à biblioteca para cumprimentar alguém que veio visitar-nos. 
(Silêncio) É alguém que te quer falar. (Silêncio) Não é preciso chorares.

ALEXANDRE: Mas o que é que eu fiz?

ÉMILIE: Sabes melhor que ninguém. Anda, vamos à biblioteca.

A mãe levanta-se, e pega no filho pela mão. Dirigem-se os dois à biblioteca. Ali encontra o bispo que folheia um livro do pai, e que imediatamente olha e sorri para os que entram. Visto da perspectiva de Alexandre, Edvard Vergérus é impressionante: alto, ombros largos, rosto comprido com mossas e envolto numa cabeleira cinzenta clara, barba, e olhos dum azul intenso. Veste uma casaca de pastor e a sua cruz de ouro cintila no tecido escuro. Estende uma mão a Alexandre. Alexandre faz-lhe uma vénia profunda. A mãe senta-se no enorme canapé de couro.

EDVARD VERGÉRUS: Bom-dia, Alexandre.

ALEXANDRE: Bom-dia.

EDVARD: Tu e eu já nos encontramos. 
(Silêncio) Em circunstâncias dolorosas. (Silêncio) Quando enterrei o teu pai.

ALEXANDRE: Sim.

EDVARD: A partir daí a tua mãe, que não tem apoio masculino, já me consultou algumas vezes para me fazer saber das suas preocupações. O que é perfeitamente natural. Sou um amigo íntimo da tua avó e o pastor desta paróquia.

ÉMILIE: Durante este período difícil, Monsenhor foi muito bom para mim e não sei como conseguiria aguentar sem a sua ajuda.

EDVARD: Também falamos de ti, pequeno.

O bispo está sentado no sofá em frente da mesa da biblioteca, puxou dum estojo de cabedal e retirou dele um cachimbo e um saquinho cheio de tabaco. Enche cuidadosamente o cachimbo e acende-o nas costas do sofá e observa Alexandre com os olhos a brilhar, dum azul intenso.

ÉMILIE: Já disse ao senhor Bispo como me sinto orgulhosa e feliz com os meus filhos queridos.

EDVARD: Ouvi dizer que tu e as tuas irmãs vão bem na escola. Que sois atentos, trabalhadores e tiveram boas notas pelo Natal. É assim, Alexandre?

ALEXANDRE 
(murmura): É.

EDVARD: Não precisas de ter medo. Sou teu amigo e só te quero bem. Acreditas ou não?

ALEXANDRE: 
(quase a chorar): Acredito.

EDVARD: Mas trabalhar bem e ter boas notas não é tudo na vida.

ÉMILIE: Alexandre, assoa-te.

Alexandre assoa-se.

ÉMILIE: Tens o lenço todo sujo! A Maj não te deu hoje um lenço limpo?

ALEXANDRE: Deu. (Assoa-se e murmura) Sujidade de merda.

EDVARD 
(que é surdo dum ouvido): Como te dizia, trabalhar bem e ter boas notas não é tudo na vida.

ÉMILIE: Ouve o que diz Monsenhor, Alexandre.

EDVARD: Mas ele está a ouvir-me. Não estás, Alexandre? E estás um pouco apreensivo com o que vou dizer, não é?

Alexandre resmunga.

EDVARD: Estás a crescer, Alexandre. Por isso vou falar contigo como um adulto falaria com outro adulto. És capaz de me dizer, és capaz de me explicar o que é mentira e o que é verdade? És capaz?

Alexandre continua calado.

EDVARD: Talvez penses que é uma pergunta estúpida, e de facto é. Estava apenas a brincar. Tu sabes muito bem o que é mentira e o que é verdade.

ALEXANDRE: Sei.

EDVARD: Muito bem, meu rapaz, muito bem. E também sabes por que se mente.

ALEXANDRE: Porque não se quer dizer a verdade.

EDVARD: Essa é uma resposta astuta, meu caro. Mas não te safas assim tão facilmente. Por isso te pergunto: Por que é que não se quer dizer a verdade?

ALEXANDRE: Não sei.

Alexandre olha para o chão, sente o esqueleto a liquefazer-se lentamente, a abandoná-lo pela planta dos pés e a espalhar-se sobre o tapete oriental da biblioteca. O bispo sorri sozinho, mergulha um comprido dedo amarelado no fornilho do cachimbo para acamar o tabaco. Émilie, com ar desalentado, olha para o filho recalcitrante.

EDVARD: Temos muito tempo, Alexandre e a tua resposta interessa-me de tal maneira que vou esperar por ela o tempo que for preciso. Não acreditas, mas é verdade.

ALEXANDRE: Mente-se para se conseguir ua vantagem.

EDVARD: Bem respondido, meu rapaz. Bem e de forma concisa. Agora vou continuar com o meu interrogatório e perdoa-me se te vou fazer algumas perguntas um pouco mais pessoais. Podes contar-nos, a mim e à tua mãe, por que mentiste na escola?

ALEXANDRE: O quê?

ÉMILIE: O teu professor escreveu-me a dizer que andas a espalhar na aula as mais incríveis mentiras.

ALEXANDRE: O quê?

ÉMILIE: Vais negar... que andaste a dizer aos teus colegas que... que eu te tinha vendido a um circo ambulante 
(lê a carta) e que no fim deste trimestre as pessoas do circo te vêm cá buscar? Que te vão ensinar a ser acrobata e a montar a cavalo com uma cigana da tua idade chamada Tamara.

Alexandre fica calado, vencido.

EDVARD: Como deves compreender, a tua mãe sentiu receio e pena quando leu esta carta. Não sabia o que fazer. Eu propus-lhe discutir contigo este assunto tão aborrecido, por isso aqui estou.

ÉMILIE: Devias ficar reconhecido por Monsenhor perder o seu tempo por tua causa, Alexandre. Não achas?

Alexandre baixa a cabeçe.

EDVARD: Dizíamos há pouco que aquele que mente quer, graças à sua mentira, obter uma vantagem. Agora, segundo toda a lógica, eu pergunto-te: que vantagem achavas tu que obtinhas ao dizeres que a tua mãe te tinha vendido a um circo?

ALEXANDRE: Não sei.

EDVARD 
(sorrindo): Acho que sabes muito bem, mas que tens vergonha de dizer. Tens vergonha, é isso? Está bem, meu caro. Está muito bem. Isso só demonstra que no futuro evitarás deixar-te levar por tais fantasias. Agora vais pedir perdão à tua mãe pelo desgosto e pela inquietação que lhe provocaste. Vá, pede perdão à tua mãe. (Silêncio) Estás a ouvir o que te digo, Alexandre?

Alexandre mantém os ombros crispados e a cabeça baixa, não chora mais, cerra os punhos e acaba por se dirigir à mãe.

ALEXANDRE: Mamã, peço perdão por ter mentido e prometo não voltar a fazê-lo.

A mãe beija um Alexandre completamente petrificado e puxa-o para si, sentando-o nos joelhos. Alexandre deixa-se ficar assim, inerte, como uma marioneta sem fios.

EDVARD: Está bem, Alexandre. O assunto está resolvido e não vamos falar mais nisto. Sabes que a imaginação é algo de magnífico, é uma força enorme, um dom de Deus. Entre os homens, são os grandes artistas, os poetas, os músicos, que se servem dela.

O bispo pôs-se de pé e dá pancadinhas na cabeça de Alexandre com a mão enorme e ossuda. 



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Ingmar Bergman, Fanny & Alexandre; Excertos.