Tenho horror a aeroportos e aviões. Naquela arena de impessoalidades não distingo pessoas de bagagens. Ali estou sempre indefeso, sem controle nenhum sobre meu destino. Dependo de terceiros para tudo, entro em filas, uno-me a uma manada, sigo a ordem unida das companhias aéreas, tiro as botas para responder ao pânico do império.
Essa sensação de atordoamento da individualidade me afronta.
Não é que eu não goste de viajar. Ao contrário. Adoro estradas, olhar o horizonte e dirigir ou andar em direção a ele. Gosto da sensaçao de saber ou não para onde ir mas poder tomar eu próprio as decisões de trajeto, de seguir ou parar.
Por não gostar de aeroportos e aviões, guardo meus tempos das recorrentes viagens aéreas, especialmente para Brasília, para a leitura daqueles títulos que a gente guarda com carinho esperando a oportunidade de degustar.
Li agora dois trabalhos inquietantes.
O primeiro é Compreender (Companhia das Letras, 465 páginas). São 40 pequenos ensaios da então jovem filósofa Hannah Arendt. Incisivos, fortes, pessoais. Pode-se começar a ler por qualquer ensaio, sem a obrigatoriedade de seguir a ordem crescente das páginas.
Lê-se ali, por exemplo, que Hitler confiava mais no fascínio que exercia sobre os outros do que em sua eficiência para escapar aos confrontos dos fatos. Olha-se para as origens humanas do mal.
Abra uma página qualquer e leia. Uma porta sempre se abre. Há pérolas em todas as partes desse conjunto de textros que se propõem a investigar as marcas do totalitarismo e de sua prevalência sobre a política.
Fortemente influencida por Heidegger, professor e filósofo com quem teve um longo relacionamento íntimo, Arendt conclui em seus ensaios que a crueldade não é absoluta, como a sugeriu Adorno. Pior. Ela é simplesmente banal.
O segundo trabalho que li no desconforto da espera é Para que serve a verdade?, de Pascal Engel e Richard Rorty (Editora Unesp, 85 páginas). Engel é professor da Universidade de Paris-Sorbonne. Rorty foi professor da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. O livro retrata uma polêmica travada entre os dois autores em um auditório da Sorbonne, em 2002. Retrata as diferenças agudas entre a retórica da busca da verdade objetiva, independente do contexto, e a retórica baseada "no que importa na prática".
É raro autores colocarem em questão o conceito de verdade. Nesse caso, demonstrando que, em alguns casos, o predicado "verdadeiro"pode ser trivialmente eliminado sem que se sinta falta dele para compreender o mundo e responder às questões que a vida impõe.
"A neve é branca", por exemplo, é uma expressão verdadeira se e somente se a neve for branca. Em outros casos, serve apenas para expressar uma aprovação ou uma atitude de cautela; serve para dissimular a diversidade do real. "Com efeito, o que muitas vezes se pretende articular mediante a noção de verdade não é algo que propriamente diz respeito à verdade. Há muito a dizer sobre a justificação de nossas crenças, mas pouco sobre a verdade", afirma Caetano Plastino na apresentação da obra.
O que liga essas duas obras é a curiosidade filosófica, o questionamento dos pressupostos correntes, o olhar desconfiado diante das certezas e a arguta análise do que se oculta na entrelinha dos fatos.
Essa é uma das minhas viagens preferidas.