Sempre fui um apaixonado por artes gráficas e, em particular, pela tipografia e pela tipologia. O ambiente industrial e a reprodução em série me fascinam, mas sobretudo o esmero no desenho das letras, que atravessou séculos e carrega consigo a história humana, me encantam.
Comecei minha atividade profissional desenhando capas de livro para o então editor Ivan Brasil, da Editora da UFPA. Circulava entre as máquinas com a curiosidade de um aprendiz. E estudei muito a história da tipologia, das artes gráficas e da publicidade impressa.
Quando vi o pequeno livro (12,5x18,7) de Eric Gill (1882-1940), "Ensaio sobre tipografia", editado em Lisboa em 2003, já não o deixei ficar tranqüilo na estante da livraria.
No começo da nota prévia ao livro de Gill, escrito por João Bicker, lê-se: "A seleção dos textos para esta coleção tem resultado sempre de motivações emocionais. Editamos livros que amamos, autores que admiramos, textos que de alguma forma nos inspiram e influenciam. Assim aconteceu com o texto de Eric Gill". Mais à frente, Bicker anota, a propósito da necessidade de adaptar a edição original ao formato da portuguesa: "pareceu-nos desde logo claro que o uso do [tipo] Joanna, um dos mais bonitos e menos usados tipos de Gill, era inquestionável. Já o desenho da página teria que ser alterado. [...] a página mantém, contudo, algumas das suas características mais relevantes: tipo, corpo e entrelinhamento, relação com as margens, inserção e legendagem das imagens, cabeças e numeração das páginas". A aproximação ao original justificaria o uso frequente do "&".
Personagem controverso que preferia ser chamado de artesão a de artista, Gill nasceu em Brighton (Inglaterra) e desde cedo demonstrou uma inclinação para o desenho, vindo a freqüentar a Central School of Arts & Crafts de Londres e, mais tarde, o Westminster Technical Institute, onde estudou gravura e lettering. Escreveu sobre arte, religião, política e moda. Criou tipos (11, embora apenas um tenha o seu nome: Gill Sans) e foi designer tipográfico.
Nas palavras do próprio Eric Gill: "temos uma tradição de escrita à mão que parece dar pouca, ou nenhuma, atenção à letra impressa ou pintada [...]. A caligrafia de juízes, advogados, eclesiásticos e outros, continuaram no seu calmo percurso, sem qualquer sinal aparente de serem influenciados por aquilo que pudesse ser a moda do seu tempo" (p. 84).
Logo depois, Gill estabelece uma comparação entre a escrita à mão e a impressão de placa de cobre. A moderna escrita à mão pode "sê-lo através da aplicação de um bom conhecimento da técnica de caligrafia a um conhecimento de boa impressão, & não pelo ressuscitar da caligrafia medieval" (p. 83). O autor releva a importância das letras romanas, que "se fixaram num tipo definitivo cerca do primeiro século d.c. Embora, ao longo dos séculos, tenham sido feitas inúmeras variações de pormenor, as letras romanas, no essencial, não se alteraram. Quatrocentos anos depois do talhe da inscrição de Trajano, fizeram-se as inscrições na placa da capela de Henrique VII, e nenhum romano iria encontrar qualquer dificuldade em ler as letras" (p. 50).
O conflito entre métodos antigos de escrita e o industrialismo, salientados por Gill, chegou ao fim. Escreve o autor: "No estado atual das coisas, a caligrafia foi estragada, porque toda a gente é obrigada a garatujar. Só se usa a caligrafia, hoje, na comunicação pessoal entre amigos, e, apesar de todas as melhorias & baixas nos preços das máquinas de escrever, as pessoas terão sempre necessidade de comunicar pela escrita à mão". O uso do computador relega cada vez mais a escrita manual para o dedilhar das teclas. Perde-se individualidade e identidade própria e ganha-se em uniformidade.
Como estaria Gill diante desse tempo em que, progressivamente, nossa escrita rotineira - não apenas aquela feita para ser reproduzida mecanicamente em série - perde os traços de nossa individualidade?